(Avelar Santos)
Os sonhos são pérolas preciosas que faíscam
ininterruptamente a magia do amor no fascinante mar da existência humana!
Cansado de tanto bater asas sem destino certo a
vida inteira, eis que certo dia um velho beija-flor descobre, numa de suas
muitas andanças solitárias por este mundão de meu Deus, para alegria indizível
de seu pequenino coração, as delícias infinitas de um bucólico jardim secreto,
perdido nas brumas insondáveis do tempo, cheio de exóticas árvores, a perder de
vista, em cujas copas os passarinhos teciam laboriosamente seus ninhos,
emoldurado por flores belíssimas, de estonteantes fragrâncias e matizadas por cores
diversas.
Alongando um pouco mais o seu olhar, em derredor,
ele avista, isolada de tudo, uma Flor encantadora, perfeita, postada
estrategicamente junto à Fonte do Amor, que, com seus jatos suaves e
cadenciados, refletia permanentemente a iridescência de sua extraordinária
beleza às insuperáveis carícias do Sol matinal.
Gargalhando loucamente de incontido contentamento,
o colibri, após ter voado tantas e tantas léguas, praticamente sem descanso
algum, almejando a todo custo repousar o seu frágil corpo - mirrado certamente
do ir e vir constantes do cotidiano - resolve prudentemente ficar por ali para
desfrutar, com segurança e parcimônia, de uma merecida e revigorante noite de
sono.
Na manhã do dia seguinte, ainda bem cedo, o
beija-flor acordou muito bem-humorado de sua letargia toda particular, e,
depois de espreguiçar-se, por inteiro, agradecendo aos céus por estar vivo e
ainda saudável, começa pacientemente a sua exaustiva faina diária da busca
incessante do néctar vital, acariciando cavalheirescamente as flores mais
próximas, invadindo, resoluto, a privacidade delas, que, contentes por tamanhos
e gentis afagos, lhe sorriem solícitas e dengosas, oferecendo-lhe tudo.
Com as energias glicosadas parcialmente renovadas,
o colibri procura deslocar-se o quanto antes até aquela majestosa Flor que
tanta atração exercera sobre ele na sua bendita chegada àquele lugar. Após a
devida corte, com inúmeros e ritmados magistrais rodopios, feitos
galanteadoramente pelo carismático ser alado, ela, de forma sedutora, sensual
mesmo, abre-lhe, de par em par, a janela benfazeja das suaves pétalas, guardiãs
incontestes de seus segredos mais íntimos, permitindo-lhe momentaneamente que
beba com sofreguidão o seu saboroso mel - e que devasse também as profundezas
de sua própria alma.
Aquilo foi demais para o velho colibri! Alucinado
de paixão e tonto de luxúria, ele, hipnotizado com tantas gentilezas e
possíveis promessas futuras, volteia a charmosa Flor infinitas vezes,
beijando-lhe o colo, com rara volúpia, aprofundando-se no seu eu, descobrindo
amiúde os seus mistérios mais ocultos, enquanto ela, vaporosa, ostentando
grande emoção, que lhe ruboriza indelevelmente a linda face, tece confidências
mil do coração, diz-lhe sobre os seus ternos sonhos - e também revela
pressurosamente a ele os seus medos abissais.
Perdidamente apaixonado, o beija-flor vai se
deixando ficar recluso naquelas desconhecidas lonjuras, não se lembrando de
mais nada da “vidinha normal” que até então levara.
E assim os radiantes dias de felicidade correram
céleres, enquanto os dois enamorados faziam planos eternos do porvir risonho!
Certa feita, o colibri, mal raiara a Alva, maluco
de desejo pela consumação do reencontro diariamente tão esperado, por ele, como
uma flecha levantou voo – e rumou aflito para os generosos braços da sua
incontestável Rainha.
No caminho, angustiado, percebe que as flores,
todas elas, surpreendentemente haviam murchado, derramando-se pelo chão,
tristemente, as faceirices brejeiras recolhidas do passado.
Batendo agora as asas com furor incomum, o
colibri, pasmo de aflição, observa que a Fonte do Amor inexplicavelmente secara
– e a Flor, outrora tão bela e sedutora, que ali ficava, fenecera dolorosamente
– e o vento cruel dos desenganos tangia sem presa sua poeira pelo chão.
Transido da dor atroz da interminável saudade que
lhe devora angustiadamente o sofrido peito, não resistindo um só momento mais
ao caos ora instaurado, o velho beija-flor vem a sucumbir também, ali,
ingloriamente, lembrando-se, todavia, naquele instante derradeiro, das doces
recordações pretéritas de sua longínqua - e fugaz - Juventude.
Avelar Santos (Professor e Escritor)