sábado, 15 de julho de 2017

OS CAMINHOS DO TREM, POR AVELAR SANTOS

Uma das muitas coisas boas criadas à época da Revolução Industrial foi indubitavelmente o trem, esse meio de transporte maravilhoso idealizado por George Stephenson, nas minas de Killingworth, com a construção da locomotiva a vapor, a Blucher, em 1814. Seu espírito empreendedor fê-lo também construir a primeira linha férrea, de aproximadamente 61 km, ligando Stockton à região mineira de Darlington, na Inglaterra, cuja inauguração ocorreu aos vinte e sete de setembro de 1825. Daí em diante, o mundo não seria mais o mesmo.
No início, o trem serviu para incrementar o deslocamento das matérias-primas para as fábricas, de forma eficaz e rápida, levando os produtos acabados a pessoas, inclusive àquelas que habitavam as regiões mais remotas.
Depois, com o passar dos anos, a invenção foi rapidamente aperfeiçoada e conquistou a Europa inteira, indo posteriormente para os demais continentes. Dessa forma, a ferrovia encurtou distâncias, facilitou as comunicações e permitiu a agilização do escoamento da produção agrícola e pecuária, em quantidade e velocidade jamais vistas.
Em redor das estações ferroviárias nasceram e cresceram vilas e cidades, sonhos foram semeados ao vento – e o progresso surgiu num piscar de olhos.
No Brasil, o Barão de Mauá foi o grande incentivador – e pioneiro - do transporte ferroviário. Através de uma concessão dada pelo Imperador D. Pedro II, ele construiu a primeira ferrovia em solo tupiniquim, que ligava a Baía de Guanabara à Petrópolis, cuja distância era de 14 km. A viagem inaugural aconteceu no dia 30 de abril de 1854, cujo comboio foi puxado pela Baronesa, nome solene da locomotiva que entrou devidamente para a História.
No Ceará, a Rede Viação Cearense – RVC - teve uma importância crucial para o desenvolvimento do Estado. Os trens levavam de Fortaleza os produtos industrializados rumo ao interior e traziam dali os produtos da terra, os mais diversos, para gáudio dos moradores da loira desposada pelo sol.
Os historiadores contam que o primeiro paquete ferroviário a circular, no Ceará, saiu da capital em direção à Pacatuba em 30 de novembro de 1873. A Estação de Trem de Fortaleza, conhecida por Central, foi construída em 1880. A denominação oficial de Estação João Felipe deveu-se à homenagem ao ministro cearense, no governo republicano de Floriano Peixoto, fato ocorrido em 1946.
Por conta da grande seca de 1877, houve um êxodo bastante significativo das populações que habitavam os sertões cearenses, buscando lugares mais acolhedores onde pudessem minimamente sobreviver. Muitos aportaram, por sorte, em Camocim, participando efetivamente da construção da mais bela - e imponente - Estação Ferroviária da Terra da Luz, bem como do inesquecível Ramal Ferroviário Camocim – Sobral, em 1881, cujas atividades duraram quase um século.
Eu e o trem somos irmãos! Nas minhas veias certamente corre diesel e os meus átomos são de aço. Sou de uma família de ferroviários de três gerações consecutivas: meu bisavô, meu avô – e meu pai. Nasci praticamente aspirando o delicioso perfume da saudosa Maria Fumaça, haja vista que a casa onde morávamos abraçava a Estação. Minha primeira fala foi transcrita em Morse. Cresci num universo de trilhos e apitos que calavam fundo na alma e nos faziam felizes. Deleitei-me, vezes sem conta, na infância e adolescência, viajando de trem. Desfrutei amiúde de suas delícias. 
Os destinos eram invariavelmente Massapê, terra querida de meus avós maternos, e Fortaleza. Esta me recebia sorrindo, nas férias escolares, na Avenida Imperador, próximo da Praça da Lagoinha, no coração da urbe, na residência do Sr. Valmir Pinto Paiva e de D. Ilca Girão. Ele, chefe de trem eficiente, nascido na distante Lavras da Mangabeira, homem de bom humor constante, generoso ao extremo, pai amoroso, bonachão e torcedor exaltado do tricolor de aço. Ela, filha dileta de Morada Nova, mãe exemplar e funcionária de carreira do DNOCS. Meus pais eram amigos da família e, por isso mesmo, abusávamos da hospitalidade do distinto casal.
Naquele tempo, idos dos anos setenta, caminhava-se pelas ruas, na capital, ainda provinciana, sem alarde, sem atropelos, sem medo de ladrões. As vitrines chamativas das lojas aguçavam a imaginação dos transeuntes. Contentávamo-nos com tão pouco, meu Deus. Ser feliz era tão simples! Aos domingos, íamos ao velho PV, que ficava logo ali, a poucas quadras de tudo, assistir jogos memoráveis do Nordestão. No aconchego do lar, a televisão era soberano, algo mágico. Embora em preto e branco, coloríamos nossas tardes com os seriados: Mundo Submarino, Vigilante Rodoviário e Rin tin tin. Os desenhos animados eram um capítulo à parte.  Ver Zé Colmeia, às voltas com o guarda Belo, sempre surrupiando lanches dos turistas, fazendo e aprontando, era indescritível. E o que dizer dos Jetsons, o meu desenho favorito, com o futuro, diante dos nossos olhos estarrecidos, ao alcance das mãos? Como era bom àquilo, Paizinho do Céu! À noite, o sono batia à porta, sem pedir licença, levando-nos imediatamente ao indizível Reino de Morfeu.
Da vida bucólica e alegre, hoje pouco resta. Pessoas queridas partiram apressadas para nunca mais voltar, deixando um vazio enorme no nosso coração e uma tristeza sem fim a nos amordaçar a alma. O ontem se esfumaçou de repente e da magia, que pena, extinguiu-se definitivamente a chama. Do trem, pobrezinho, ficou somente a doce lembrança. Nada mais!
Avelar Santos (Professor e Escritor)