sexta-feira, 29 de setembro de 2017

A CIDADE DO CORAÇÃO, POR AVELAR SANTOS

A cidade é um símbolo sagrado do útero da civilização, da experiência humana recolhida na busca incessante da aproximação maior entre as pessoas, na perspectiva de se desfrutar, com plenitude e união, de segurança, comodidade, calor fraterno – e de paz.
Ela também representa a materialização dos nossos sonhos, o grito de nosso eu mais profundo que anseia pelo belo, pela harmonia das coisas, pelo encontro do passado com o presente, pelo colorido da vida.   
Quando a construímos, coletivamente, ao longo dos anos, deixamos nela não somente estruturas físicas representadas por prédios diversos, e monumentos imponentes, mas principalmente legamos a ela nossas marcas pessoais, nossos ideais, nossos esforços, nossos talentos - nossa alma!
Nasci na cidade do meu coração, na amada Camocim, há 60 solstícios de verão! Sou filho do mar, do vento, das dunas, dos manguezais, dos lagos, da quietude poética de suas frias madrugadas.  
Tive o privilégio de conhecê-la menina-moça, deslumbrante, radiosa, cheia de encantos, ainda pequenina, bela e doce, vestindo-se, faceira, às pressas, no horizonte, com suas ruas e praças de um tablado de xadrez, que se acomodavam e se encaixavam tão bem às retinas felizes dos olhos, ensaiando os seus primeiros passos rumo ao futuro, boiando, serena, provinciana, dia após dia, num mundo mágico de ressoar constante de plangentes apitos, com os navios atracando no seu cais – e com Sua Majestade Imperial, o Trem, chegando, contente, impecável, todo finzinho de tarde à Estação.
Na cidade do meu coração, que eu trago guardada a sete chaves, no peito, fiz do tempo um prisioneiro improvável. Por isso, posso ainda correr com os pés descalços, pelas calçadas, buscando jacarés para tomar um delicioso banho de chuva, e, nas manhãs repletas de Sol, falar gentilmente com os passarinhos, no alto das goiabeiras, tecendo sem pressa o novo amanhã, tentando ordenar cada detalhe de sua intrigante e complexa teia.  
Na cidade do meu coração, no aconchego e simplicidade do lar, que retive para sempre no baú imenso da memória, as tardes fagueiras continuam tranquilas, onde a aventura se encontra estampada - e vivida - nos quadros surreais dos inesquecíveis gibis, cujas páginas, cheias de heróis e estórias fantásticas, permanecem incendiando minha imaginação, proporcionando-me um prazer indescritível.
Na cidade do meu coração, ao cair da noite, as ave-marias ecoam, solenes, perfumadas, pelos ares, trazendo conforto às pessoas, especialmente aos aflitos, que buscam sofregamente o bálsamo das bênçãos celestiais, fazendo da Fé a bússola segura que vai guiá-los pelas veredas mais remotas, mesmo aquelas escuras e sombrias.   
Sob o seu céu estrelado, de beleza sem fim, debutaram tantos amores, tantas poesias foram desesperadamente semeadas, a esmo, por muitos, pelo caminho, na esperança de colherem a felicidade, quanta alegria encheu jovens corações!
Sou descendente direto do bravo povo Tremembé, senhores do Paraíso, que um dia habitaram estas longínquas plagas, pertencente também à linhagem de três abençoadas gerações de ferroviários, que devotaram suas existências em servir bem às pessoas, nas simples funções que exerciam.
Por isso, certamente os meus átomos são feitos de aço, e, nas minhas veias, ao invés de sangue comum, jorra uma substância oleosa, o diesel, impulsionando uma potente locomotiva que carrega os vagões pesados da saudade, cujo comboio não cessa de correr dentro de mim.
Definitivamente não sei, pelas fragilidades próprias que as décadas vividas infelizmente nos impõem, quanto mais este pequeno milagre continuará a acontecer comigo, permitindo-me beber o cálice de infinitas – e boas – recordações, emocionando-me de maneira abissal.  
Parabéns, Camocim!
Avelar Santos (Professor e Escritor)