sábado, 29 de setembro de 2018

HOMENAGEM A CAMOCIM (139 ANOS), POR AVELAR SANTOS

Descendente direto do valoroso - e bravo - povo Tremembé, que um dia foi senhor inconteste desse pedaço do Paraíso, nasci na minha amada Camocim há 61 solstícios de verão!
Sou filho do inigualável mar de esmeralda, de beleza sem fim, enfeitado do nascer da Alva ao pôr do Sol por velas coloridas, singelas, que singram sem parar, majestosas, a sua baía, cujo encanto acalma a vista e emudece por completo a alma, levando-nos mesmo que por um momento fugaz, que se torna paradoxalmente eterno, a sonhar com um mundo melhor.
Sou filho do vento, menino travesso, irrequieto, que canta, feliz, por entre a imensidão dos coqueirais, brincando o dia inteiro, sem jamais se cansar, com as ondas, tangendo, de forma ininterrupta, na barra, os seus belos cavalos puro sangue de cristal, que eriçam espetacularmente suas crinas com o seu toque magistral.
Sou filho das dunas, cujo Semeador Divino certamente adora poesia, que vão se derramando, intactas, perfeitas, por toda extensão da Ilha do Amor, formando cerradas fileiras que nem mesmo o grande Júlio César conseguiria transpor, tecendo, com indizível arte e zelo, diques naturais que, no inverno, aprisionam a água benfazeja que cai das torneiras do céu, formando belíssimas lagoas que nos convidam a um mergulho inesquecível.    
Sou filho dos manguezais, berçário complexo da vida marinha, que emolduram significativamente nossa paz interior, aninhando, nos seus ramos, resplendentes de sal, ao fim abençoado de cada dia, garças e biguás, que se esparramam, numa alegre algazarra, por toda orla, construindo, na diversidade de suas cores, um mosaico surreal que nos eleva até o Criador.  
Carrego dentro de mim uma velha e pesada locomotiva, daquelas antigas, tipo Maria Fumaça, que corre ligeira, por entre as veredas do meu sertão mais longínquo, puxando uma infinidade de vagões, cada um deles levando como valiosa bagagem fatos pretéritos que marcaram a minha pobre existência.
Nesse instante, relembrando tudo isso, sou criança novamente e meu coração, levado pela emoção mais pura, sorri de tão contente. Um turbilhão de boas recordações, feito cardume, passa diante de mim, deixando-me extático, mudo, cujo filme, repetitivo, mas nunca cansativo, se desenrola sem pressa na mente numa tela Cinemascope.
Conheci Camocim ainda menina-moça, radiosa, bela e doce, boiando, serena, cotidianamente, num mundo mágico onde havia o ressoar constante de plangentes apitos, com os navios atracando no seu cais – e com Sua Majestade Imperial, o Trem, para deleite de todos nós, chegando, contente, impecável, todo finzinho de tarde à Estação. E quando a noite desdobrava solene o seu escuro manto sobre a pequenina cidade, perpassava pelos ares uma orquestração sublime de suaves e perfumadas ave-marias, que traziam infinito conforto às pessoas, especialmente aos aflitos, àqueles que buscam sofregamente o bálsamo das bênçãos celestiais – e que fazem da Fé a única bússola capaz de guiá-los pelos ermos caminhos, na estafante e imprevisível jornada terrena, mesmo aqueles escuros e sombrios.
Não sei por quanto tempo mais este pequeno milagre do trem operário que, debalde o seu cansaço extremo, resfolegando, com jeito de tísico, pobrezinho, me reconduz, nas madrugadas insones, a perdidas estações, fincadas no remoto passado, continuará a acontecer comigo.
Na verdade isso não importa muito agora por que o bom Deus, na sua infinita misericórdia, permitiu a mim, Simeão da Terra da Luz, vislumbrar, com intenso júbilo, não o Messias, decerto, indigno que sou, mas a cidade, formoso pássaro,   distender finalmente suas potentes asas que o levarão, por rotas seguras, rumo ao futuro.    
Parabéns Camocim! 
Avelar Santos (Professor e Escritor)
Foto: Wanderson Lima