domingo, 28 de julho de 2019

"O TREM DE JOSÉ", POR AVELAR SANTOS

José sempre foi aficionado por trem. Também pudera! 
Desde a mais tenra idade conviveu com o mundo encantado das locomotivas e dos trilhos, levado que era, pelo seu querido pai, Antônio dos Santos, para acompanhá-lo no percurso Camocim-Sobral, confortavelmente instalado num cesto de vime, que sua amada mãe, Guida, caprichosamente forrava-o com panos velhos e macios, embora discordasse veementemente do marido, por estas, digamos, "viagens  preliminares" do seu filhinho. 
E lá ia o José, aos seis meses de idade, a sentir o gostoso corcovear de camelo gigante da velha - e inesquecível -  Maria Fumaça, acentuado ainda mais nas curvas e nos cortes, que embalava, doce e suavemente, o seu sono; a ouvir o apito plangente do trem, afugentando bichos ou alegremente anunciando a chegada do paquete em alguma estaçãozinha deste pobre Ceará de meu Deus, que reverberava, na imensidão agreste da paisagem do sertão - e também no seu cérebro pequenino, como música límpida e cheia de cores, prodigiosa, do grande Amadeus Wolfgang Mozart: Incomparável!
No distante ano da graça de 1913, meu avô, Antônio dos Santos, casa-se, em segundas núpcias, com minha avó, Guida. Tiveram seis filhos. O primogênito foi José. Homem simples, trabalhador incansável, temente a Deus, vovô era guarda-freios da Rede Viação Cearense - RVC. Posteriormente exerceria, com zelo e dedicação, a função de bagageiro, serviço humilde, mas de grande responsabilidade. Aposentou-se, após mais de trinta e cinco anos de lutas ferroviárias.
Incentivado por seu pai, José, em 1929, no dia 26 de agosto, foi admitido como mecânico-aprendiz, nas Oficinas, aqui, em Camocim. Durante um ano e dez meses trabalhou gratuitamente, aprendendo tudo sobre aquele ofício. Em 1931, no dia 27 de agosto, aos 17 anos, ele passaria a pertencer, de modo efetivo, aos quadros da RVC.
Com aplicação, inteligência, força de vontade e muito estudo, José ia galgando, pouco a pouco, espaços dentro da Repartição. Assim, chegaria ao posto de chefe de trem, por concurso público, em 1946. Durante dezesseis anos (de 46 a 63) exerceu, com denodo e eficiência, esta gratificante e honrosa função. (Ainda o vejo, irradiando alegria, no seu uniforme cáqui, impecável, passado a goma, por D. Pretinha, num velho ferro a brasa, com o seu reluzente quepe na cabeça, adentrando à  Gare da velha Estação). Em 1963, torna-se fiscal - trabalho que desempenharia até 1965.
Em 1968, no dia 7 de maio, após trinta e seis anos e oito meses de intensa labuta, José se aposenta, podendo, enfim, dedicar-se um pouco mais à família.
 Chefiou seu primeiro trem, um trem cargueiro, no dia 26 de julho de 1946. E, a 27 de maio de 1947, chefiaria o seu primeiro trem de passageiro, com destino a Crateús.
No dia 20 de dezembro de 1963, uma sexta-feira, por volta das 17h30min h, José sofre um grave acidente: O trem em que ele vinha trabalhando, cujo maquinista era alcunhado de Barriga, virou a quatro quilômetros da cidade de Granja. Houve duas mortes e trinta e sete feridos. Ele teve somente algumas costelas quebradas - e muita sorte. O Sr. Meton (pecuarista e homem conceituado no município vizinho) foi o primeiro a chegar, com sua Rural, ao local do sinistro. 
Reconhecendo que entre os feridos estava o chefe-de-trem José dos Santos, emprestou-lhe, de pronto, sua solidariedade, querendo transportá-lo urgentemente para Camocim. Este achou por bem que ele prestasse auxílio às outras pessoas. Depois de algum tempo, outro veículo, de propriedade do Sr. Fernando Trévia, ajudaria no transporte dos acidentados de maior gravidade. Meu pai aguardou, naquele dia fatídico, pacientemente, por vontade própria, que todos os passageiros fossem removidos para Camocim. Ele foi o último a deixar o local do acidente.
Hoje, aos 105 anos, recém-completados, José vende vitalidade. Talvez isto se deva, em parte, ao seu metódico e tranquilo modo de vida, à alimentação frugal e saudável (nada de fritura e pouco sal) e, também, à incomensurável fé em Deus. Eis tudo!
Casou-se duas vezes: inicialmente com  a jovem camocinense, Maria Aragão Maciel, no dia 1 de maio de 1943. Dessa união nasceram quatro filhos. Vindo a esposa a falecer, ainda jovem, aos vinte seis anos, e, após um curto período de viuvez, contrai novamente núpcias, deste feita com uma flor massapeense, Margarida, minha amada Mãe, no dia 20 de setembro de 1951. Tiveram sete rebentos, sendo eu próprio o segundo trazido pela distinta cegonha.
Morando em Fortaleza, já há algum tempo, ele jamais esquece a sua querida Terra Natal. Assim, de quando em vez, vem a Camocim para dar asas à imaginação, voltar no tempo, tornar-se novamente menino, rever filhos, amigos, sentir-se, enfim, abraçado pelo passado que permanece vivo nas mentes e nos corações de quem o vivenciou plenamente um dia.
Os apitos plangentes de outrora ecoam fortes em seus ouvidos. O cheiro de fumaça - e também do diesel - ainda impregna suas narinas. Estações mil, de formas e tamanhos variados, continuam generosamente a recebê-lo. 
Pessoas de todos os matizes, fatos pitorescos, e também trágicos, povoam de forma incessante a sua mente. Um trem imenso, do tamanho do abismo que liga o Céu à Terra, percorre, sereno, todas as madrugadas, as veredas mais recônditas de seu coração, levando-o eternamente a sonhar.
Este é o José, homem honrado e ferroviário de primeira linha. 
Este é o meu pai!
Avelar Santos (Professor e Escritor)