Na Rua Engenheiro Privat, a cem metros da Praça da Estação Ferroviária, em Camocim, o tempo volta e nos traz silenciosos recados quando contemplamos o vetusto prédio do nosso saudoso Cine João Veras.
Reporto-me como “nosso”, porque ele adentrou as nossas vidas e marcou nossa infância e adolescência, exatamente quando representou o que havia de mais atraente nos anos de tão parcas opções de entretenimento.
Fundado na década de 1920, o velho cine passou por diversas fases, alternando tempos de glória e períodos de decadência, incluindo aí, fases em que cerrou, temporariamente, suas portas, sofrendo sequenciadas mudanças de administrador.
Existem conhecedores da história de nossa Camocim antiga, vezeiros em afirmar que o Cine João Veras, em seus primórdios, foi denominado de Cine Rialto, vindo a receber, posteriormente, na década de 1930 ou 1940, o nome pelo qual foi consagrado e ainda hoje é lembrado, numa homenagem a João Batista Veras, irmão da primeira esposa do senhor Alfredo Coelho, proprietário daquela casa de espetáculos.
Nos primeiros anos de sua fundação, o Cine João Veras não era sonorizado, época em que tínhamos o chamado “cinema mudo”.
A alternativa que se dispunha para dar mais vida ao espetáculo era tornar a sala musicada, ao vivo, por pianistas que se consagraram por suas oportunas apresentações, destacando-se a Sinhazinha Gouveia, Nísia Trévia e a esposa do senhor Celso Mota, de cujo nome não se tem informação assegurada por uma fonte fidedigna.
Dentre aqueles que o administraram, durante as diversas fases de sua existência, são lembrados os senhores Joaquim Tavares de Assis (conhecido como Pintor), Edilson Coelho, Francisco Vasconcelos, Ismael (o turco, que também era professor no Ginásio Padre Anchieta), Nonato Vasconcelos e Hélio Veras, cada um com o seu estilo próprio de dirigir e como as respectivas épocas recomendavam.
O período compreendido entre meados da década de 1950 e o início da década de 1960 foi, para mim, os melhores anos do Cine João Veras, quando assisti aos meus primeiros filmes e me apaixonei pela decantada Sétima Arte, não obstante a simplicidade e o primitivismo daquela casa de espetáculos.
Encimando cada uma de suas oito portas frontais, havia uma lâmpada que permanecia acesa até que se fosse iniciar a sessão, quando, simultaneamente, uma sirene era acionada para avisar os retardatários sobre o início do espetáculo, a partir de quando apenas a lâmpada correspondente à principal porta de entrada permanecia acesa.
Enquanto aguardávamos o início da única sessão, havia música ambiente na sala de projeção, onde ouvíamos, através do alto-falante posicionado atrás da tela, gravações de grandes orquestras, predominando Glenn Miller, que constantemente nos premiava com a inesquecível Moonlight Serenade. Era esta, também, a época do pós-guerra, de grande prosperidade norte americana, conhecida como Great American Celebration.
Aquela nação consolidava sua presença nos mais diversos países do mundo, firmando-se como potência militar e econômica. A sua indústria cinematográfica difundia os feitos heroicos nas batalhas da segunda guerra mundial e da guerra da Coréia, além dos famosos filmes cowboys e seus destemidos pistoleiros na conquista do oeste americano.
Na minha infância, participei, entusiasmado, do público presente ao Cine João Veras aplaudindo, de pé, com estridente salva da palmas, a chegada da Cavalaria do Exército Americano, que chegara para socorrer a caravana de diligências, cercada pelos ferozes índios Apaches.
Durante a projeção, qualquer falha na sua operacionalização provocava um imediato protesto da platéia. Geralmente eram interrupções provocadas pela quebra da fita, ou pela ausência da luz forte na tela, produzida pela queima dos bastões de carvão, indispensável à projeção da imagem.
Era, assim, o Cine João Veras de meu tempo. Havia uma divisória de madeira, com altura aproximada de 1,20 metro, que dividia a sala de projeção em duas categorias - Primeira Classe e Geral - sendo esta última ocupante da área mais próxima à tela, onde os bancos não tinham apoio para os braços e nem para as costas, e cujo ingresso tinha preço único e mais barato, comparativamente aos bilhetes da Primeira Classe.
Aos usuários da Geral, era permitido entrar vestido da forma mais simples, e até descalço. Os mais espertos chegavam mais cedo e ocupavam os lugares da retaguarda, mais distantes da tela, usufruindo, ainda, do “conforto” de poder apoiar suas costas à divisória, acomodados naqueles assentos de tábuas corridas.
Mas, a Geral tinha, ainda, outros inconvenientes, como a canalhice de seus próprios frequentadores, os quais se divertiam ao fixar, no cabelo dos mais novos, a massa pegajosa dos chicletes mascados.
O aviso “É Proibido Fumar”, afixado na parede, nem sempre era respeitado, embora houvesse, nos dois cantos dos fundos da sala de projeção, duas áreas descobertas que serviam para melhorar a ventilação e destinar um espaço apropriado aos fumantes, onde visualizávamos a placa “Galeria dos Fumantes.”
Além disso, aqueles que buscavam satisfazer a sua dependência de nicotina no local proibido, logo haveriam de sentir no rosto, acintosamente, a luz forte do facho que partia da lanterna de três pilhas do Chico Soares. Este empregado, conhecido também como Chico Masquinha, era o faz-tudo do cinema, naquela época.
Ele auxiliava na operacionalização da máquina de projeção, atuava como porteiro e fiscal da geral, assumia a função de letrista no preparo das tabuletas de propaganda, coordenava a limpeza, punha para fora os penetras e focava o clarão de lanterna no rosto dos fumantes.
Durante o dia, em pontos estratégicos da cidade, ficavam expostas as tabuletas, amarradas aos postes de ferro da rede elétrica, as quais anunciavam o programa diário do cinema, indicando o nome do filme, os principais atores, o horário sempre às 19h30min e preços dos ingressos.
Esses instrumentos de propaganda, confeccionados com madeira e tecido ordinário recoberto com papel, recebiam a escrita feita com tinta d’água, nas cores vermelha, preta e azul, e eram posicionados em locais de maior movimento.
Geralmente, os locais preferidos eram as esquinas do Armazém José Trévia, do Armazém Eduardo Normandia e Loja do Neném Lúcio, além de outros pontos eventuais, como a Praça da Matriz e o Mercado. E a divulgação contava, ainda, com os anúncios volantes, constituído por uma tabuleta especial, já que contava com cartazes do filme, carregada por dois garotos, tendo ainda um terceiro que seguia à frente, tocando um tambor.
Em um período de cinquenta anos, inserido nas décadas de 1920 até a de 1960, surgiram algumas salas cinematográficas em Camocim, mas, nenhuma delas se manteve tantos anos em atividade quanto o Cine João Veras.
Dentre aquelas que surgiram e, posteriormente, desapareceram, citamos o Cine São Pedro, no Bairro São Pedro, no limiar dos anos sessenta; o Cine Astória, pertencente ao senhor Neném Lúcio, que no final dos anos cinquenta funcionava no antigo prédio do senhor Manoel Juarez Carneiro, na Praça do Mercado.
Registramos, também, o Cine Recreio, de passagem efêmera, que funcionava em uma sala da antiga sede provisória do Comercial Club de Camocim. Em épocas mais remotas, Camocim foi premiado, ainda, com o Cine Theatro Éden, também na Praça do Mercado, fundado em 1929 pelo senhor João Veras e fechado após sua morte, em 1932, vítima de paratifo. Fala-se, ainda, do Cine Relâmpago, de cuja história, ironicamente, quase nada se sabe e de nenhum registro se tem notícia.
A exemplo dos outros, o Cine João Veras, também, cerrou suas portas aos apreciadores da cinematografia, mas deixou um legado de maravilhosas lembranças para aqueles que tiveram o privilégio de frequentar as suas modestas acomodações e de apreciar o seriado Os Perigos de Nioka ou A Quadrilha do Diabo, em sua tela artesanal, tão distante dos tempos modernos.
Dos cinemeiros camocinenses, um preito de saudade ao “nosso” Cine João Veras, pelos bons tempos, quando encampou parte de nossa infância e encantou os sonhos de nossa juventude, assegurando ternas lembranças aos saudosistas de minha terra.
Texto extraído do livro "Outros Tempos", de José Maria Trévia