Houve um tempo em que me dediquei todas as manhãs
para pesquisar a documentação do fórum local e, saltou-me os olhos como as
mulheres são tratadas nos inquéritos. Há um óbvio machismo contido nos
depoimentos, sem contar a maneira como as mesmas são desqualificadas ou
deslegitimadas nos processos, principalmente nos de sedução e defloramento.
Sem declinar nomes, posto que, é factível que
familiares dessas pessoas ainda estejam vivas e, para resguardar a privacidade
das mesmas, utilizaremos nomes e apelidos fictícios para nossas histórias.
Note-se também a íntima relação feita nos casos
aqui citados das “profissionais do sexo” com o antigo cais do porto e com
os homens do mar.
Em 1919, o Presidente da Associação Comercial em
ofício enviado ao Delegado de Polícia de Camocim, pedia enérgicas providências
para conter os roubos das mercadorias deixadas fora dos armazéns do porto por
um “grupo de vagabundos – homens ociosos, meninos vadios e mulheres da vida
airada”. Além do preconceito, a associação da prostituição com o roubo. Em
outro ofício, o presidente, chama a
atenção da autoridade para conter os “actos indecorosos contra a moral que
succede muitas vezes serem testemunhas dessas scenas, famílias que por alli
passam”.
Mas, a mocinha que não quisesse “ficar falada”
teria que primar pelo recato e evitar andar com “os marinheiros de bordo dos
navios que ancoram neste porto”. Esta foi a alegação que deu o pescador
Raimundo Preamar para não se casar com a menor Branquinha, filha da prostituta
Maria “Rabo Grande”, acusado por esta de tirar-lhe a virgindade. Raimundo
Preamar acaba se casando com Branquinha no religioso, por pressão do delegado,
mas não “faz vida com ela”. O interessante nesse caso é que, independente do
comportamento de Branquinha que nasceu e se criou na zona do Terrimar o que
pesa nas declarações das testemunhas é a vida pregressa de sua mãe. Uma
testemunha arrolada diz que ela é a culpada por não “botar sentido o namoro
ceboso de sua filha”. O próprio acusado diz que a mãe de Branquinha “é mulher
do bagaço, meretriz”. Maria “Rabo Grande” fazia ponto no Mercado Público
durante o dia e se embebedava frequentemente à noite pela beira do cais. Apesar
disso, a história tem um desfecho surpreendente e o acusado é condenado a
trinta meses de reclusão e cumpre efetivamente doze.
Uma outra queixa chega à Justiça, após a menor
“ofendida”, codinome Danadinha, já ter tido o filho, pretenso fruto do
“congresso sexual” entre ela e o sedutor João Miguel. Nos autos de declarações,
a mãe da vítima disse que não tinha representado antes contra João Miguel
porque o mesmo vinha sempre prometendo casar com sua filha que foi
seduzida pelo mesmo com a promessa de
lhe dar “uma casa e uma vaca”. Como podemos perceber, não é só político que
promete. João Miguel se vale de testemunhas que apontam uma má conduta da
ofendida. Uma delas declara “Danadinha costuma frequentar o cais local,
entrando no interior dos navios que ali atracavam, demorando bastante em
companhia de tripulações de barcos ancorados no Porto de Camocim”. Um outro
diz: “... que a ofendida sempre viveu solta na rua, sem que os pais olhassem
para o procedimento da mesma”.
As próprias alegações finais da Promotoria já
apontam para o desfecho final deste processo, pedindo a absolvição do imputado:
“A vida, o meio ambiente onde laborava a menor, facilmente a levariam ao mundo
do vício, tendo-se em vista não ter um lar honesto e sem mancha, quando uma das
testemunhas alega haver mantido relações sexuais com Danadinha, tendo o próprio
pai em casa (dela)”. Na sentença de absolvição do acusado, o Juiz ressalta que
o acusado “é pessoa de conceito na cidade (...) sendo sua palavra, por isso
mesmo, merecedora de fé, até prova em contrário”.
Poderíamos citar inúmeros casos pesquisados, mas, talvez o leitor não esteja interessado em saber das artimanhas usadas para se deflorar uma “pequena incauta” de antigamente.
Poderíamos citar inúmeros casos pesquisados, mas, talvez o leitor não esteja interessado em saber das artimanhas usadas para se deflorar uma “pequena incauta” de antigamente.
Carlos Augusto Pereira dos Santos