domingo, 22 de maio de 2016

AS VELAS DE CAMOCIM

AS VELAS DE CAMOCIM
(Avelar Santos)
Desde menino, aprendi a amar incondicionalmente as velas que enfeitavam, singelas e bucólicas, do raiar da Alva ao nascer da Lua, a bela baía de minha adorada cidade, Camocim.
Como era bom, meu Paizinho do Céu, vê-las chegar, à tardinha, na Praia das Pedrinhas, próximo da Pedra do Mero, numa procissão  infinita de beleza e cor, deslizando, suaves, encantadoras, no incomparável e lindíssimo mar esmeralda da Terra da Luz, como se fossem garças reais adejando ao vento norte.
Nessas ocasiões, acompanhado de meu pai, íamos, eu e ele, com o coração gargalhando de felicidade e os olhos em festa, abarcando toda linha do horizonte, comprar peixe fresco, ali, nas canoas, corós e pescadas amarelas, ainda de guelras avermelhadas e olhos vítreos brilhantes, por modestíssimos cruzeiros.
À medida que as canoas chegavam a terra, ostentando na proa nomes exóticos, cinzelados artisticamente pelo sal e pelo Sol, as pessoas se acotovelavam ao seu redor e, aos gritos, faziam os seus pedidos ao mestre da embarcação, que, conhecendo todos eles, fregueses antigos, separava, metodicamente e com extrema rapidez, em pequenos cambos, os peixes prediletos de cada um, embolsando, em seguida, o dinheiro da compra.
Depois de sermos atendidos, esgrimindo paciência e bom humor, voltávamos para casa, alegres, a passo de tartaruga, conversando animadamente sobre coisas do futuro e também amenidades cotidianas, agradecendo intimamente ao Todo Poderoso por tantas graças recebidas diariamente, aos borbotões, quiçá, muitas delas, até imerecidamente, bem como pelas fartas iguarias, provenientes de nosso abençoado mar, que estariam brevemente na nossa franciscana mesa.
O tempo correu lépido e fagueiro, nas asas ligeiras de Mercúrio, e eis que, de repente, não sei bem por que, dei-me conta do sumiço da Lucinda, Trás dos Montes, Encantada, Bem me Quer, Flecha do Mar, Gaivota, dentre tantas outras canoas, tão conhecidas, que encheram de êxtase absoluto minha pobre alma e povoaram ingenuamente os meus sonhos, nos idos e inesquecíveis anos de minha infância.
… Do velho balaústre, acompanhado, agora, por minhas duas filhas pequenas, Damaris e Samira, filhas eterna e infinitamente tão amadas, que palram alegremente, sem parar, questionando-me coisas que não sei explicar direito, diviso, ao longe, as velas coloridas das canoas, enfunadas, na entrada da barra, elegantes, brincando com o vento, singrando desafiadoramente as ondas, a fim de se recolherem, pobrezinhas, exaustas, após mais um dia de embates e vitórias, no aconchego seguro do lar.
Nesse instante, sou criança novamente e meu coração, levado pela emoção mais pura, sorri de tão contente. Um turbilhão de boas recordações, feito cardume, passa diante de mim, deixando-me extático, mudo. Então, como num passe de mágica, as garras predadoras da saudade cravam fundo, dentro de mim, levando-me, num átimo, ao Camocim inigualável de antigamente, cujo filme se desenrola em minha mente de forma fugaz. As crianças parecem perceber minha angústia interior, estampada fortemente nos meus olhos, marejados de cintilantes lágrimas, que tento, a todo custo, delas, esconder. Sou abraçado por ambas, estranhamente caladas. Nada mais é preciso! O amor delas me basta - e fala por si só!
Meio sem graça, encabulado por elas terem visto o meu choro, embora contido, afago meigamente os seus cabelos loiros, que esvoaçam graciosamente, no ar, beijando, em seguida, ternamente, cada uma delas. 
De mãos dadas com a Damaris e com a Samira, a caçula, nos ombros, sem ainda nada falar, com o coração apertado, cheio de gratas e perdidas lembranças, rumo finalmente para minha velha casa.
Avelar Santos (Professor e Escritor)