(Avelar Santos)
No princípio era o Verbo – e, por Ele, todas as
coisas foram feitas!
Há muito tempo atrás, quando o mar, menino
travesso, cismava de avançar, nas grandes marés, sobre a cidade,
espreguiçando-se, por entre algumas ruas e becos, indo e vindo sem se cansar,
dando “bom dia” molhado aos transeuntes que passavam pelo centro, próximo à
Agência dos Correios, e, também, aos poucos moradores das redondezas, havia
casebres pontilhando a orla marítima de Camocim, que olhavam, sem emoção
alguma, a beleza e o brilho incomum da Ilha da Testa Branca, incrustada, rainha
absoluta, na imensidão daquela parte feliz do grande Oceano, onde pessoas
humildes e trabalhadoras, a maioria pescadores, passavam seus sofridos dias,
vagando a esmo por este mundinho de meu Deus, sem, entretanto, nenhuma delas,
esboçar querer partir logo desta para melhor, apesar de todas as atribulações
diárias e indizíveis sofrimentos.
Em uma dessas miseráveis habitações, morava o
mestre Bonifácio, homem de raras palavras e de pronta ação, de fibra invejável,
curtido pela inclemência do sol e pelos atropelos da vida, nos seus azeitados
quarenta e dois anos, recém-completados, que sustentava a família, mulher e
cinco filhos pequenos, com o incansável trabalho cotidiano de comandar uma
esguia e ágil embarcação, que se aventurava, com seus três tripulantes, na
inigualável costa camocinense, saindo, anônima, de mansinho, espiando as
lamparinas celestes, invariavelmente quando todos os galos do mundo ainda
dormiam, sem se lembrarem, marotos que eram, de anunciar a chegada da manhã, e,
lá pelas três da tarde, hora nona bendita para a ingrata humanidade em que
Cristo foi dolorosamente crucificado, no Calvário, ela estava de volta,
arfante, orgulhosa, trazendo uma impressionante variedade de peixes,
especialmente saborosas pescadas amarelas, ciobas, serras e cavalas, como
nenhuma outra de suas irmãs siamesas jamais fizera.
Certa feita, pesadas nuvens escuras tingiam o
horizonte, prenunciando o pé d’água iminente. Já avistando, ao longe, com olhos
de míope, embaçados, a silhueta benfazeja do Farol do Trapiá, a Gaivota foi
surpreendida por enormes ondas, que brincavam com ela, sem pressa, junto com o
vento, fazendo-a despencar perigosamente em abismos pavorosos abertos nas águas
profundas, debatendo-se, aprisionada, contra o fragor - e a volúpia - das ondas.
Com suas asas incapacitadas de baterem compassada e fortemente, impedindo-a por
completo de sair daquela angustiante situação, debalde foi o inaudito esforço
dos pescadores - e a magistral habilidade demonstrada pelo Bona.
Por uma eternidade, a canoa, cansada, pobre
infeliz, lutou ingloriamente contra as ferozes forças da Natureza! Quase
riscando a ponta da barra, com a vela branca inteiramente rasgada, rangendo,
gritando, clamando piedade aos céus, rompendo o último Rubicão para chegar ao
lar, não resistindo mais ao galope tresloucado do mar, um cavalo indócil que
disparara em fúria ensandecida, transformando a líquida planície esverdeada em
montanhas cristalinas assombrosas, cujos vales de lágrimas se abriam a seus
pés, a Gaivota veio, ali mesmo, para desespero de todos os seus ocupantes, que
se viam impotentes em lutar contra o poderoso Leviatã, debater-se em vão,
entrar em agonia estertorosa, final, entregando-se sofridamente nas mãos cruéis
do carrasco destino.
No mar agitado, os homens tentavam manter a calma,
pois sabiam que poderiam sucumbir a qualquer instante se gastassem
desnecessariamente energia. Assim, esforçavam-se para acomodar músculos e mente
em sintonia perfeita. E rezaram para um milagre acontecer.
À noitinha, resgatados por um barco pesqueiro que
demandava ao porto, assustados pescadores chegaram a terra. Chamado que
fora repentinamente a navegar em outras águas, mais longínquas e perenes,
mestre Bona não se encontrava entre os sobreviventes.
Na madrugada seguinte, esquecendo a tragédia
recente, represando medos e quaisquer outras preocupações, as valorosas velas
de Camocim saíam novamente para pescar.
Avelar Santos (Professor e Escritor)
Avelar Santos (Professor e Escritor)