domingo, 14 de maio de 2017

MORGADO

MORGADO 
(Avelar Santos)
As lembranças são riachos de águas calmas e iridescentes que desaguam permanentemente na alma, fazendo-nos magicamente retroagir ao passado mais distante.
No Massapê de antigamente, as fazendas de gado pontilhavam o vasto sertão, sendo um dos fortes pilares da economia do município. Uma delas está entranhada tão fortemente no subsolo árido de minha memória que, vez por outra, ela emerge, graciosa, dizendo-me coisas que o tempo infelizmente esqueceu. Falo do Morgado, uma fazenda que ficava a poucos quilômetros da cidade, da família do meu avô materno Raimundo Anastácio - e que permanece virginalmente intocada nos caminhos ermos do cérebro.
No decorrer dos anos da saudosa infância, visitava frequentemente Massapê, aboletado todo contente na janela escancarada de um trem operário, que saía de madrugada da majestosa gare da Estação Ferroviária de Camocim, sofrendo dores de parto para chegar são e salvo ao seu destino.
Lá morava o meu avô, homem de bondade inigualável, cujo dedicado trabalho consistia em comboiar vários animais de carga. Usualmente ele deslocava-se para o Morgado, a fim de vender seus deliciosos produtos da terra, bem como rever parentes e velhos amigos. Invariavelmente, ele partia antes do romper da aurora, assobiando, feliz, perdidas canções, montado no seu cavalo malhado, amigo inseparável de longa data, incitando as mulas, com sua voz pausada e mansa, a trotarem em uníssono, cadenciadamente, em fila dupla, solfejando civilizadamente “bom dia” a quem os visse passar.
De tardinha, após cumprir zelosamente com os seus compromissos de eterno comboieiro, deitado no oitão da casa modesta, em um tucum voltado para o nascente, ouvia, atento, as notícias e os casos picarescos que eram contados pelos circunstantes, reunidos em uma grande roda familiar, emitindo, aqui e ali, seu franciscano ponto de vista acerca de certos fatos. À noite, depois de um frugal repasto sob o singelo facho de lampiões, que espantavam a custo o breu da noite, a conversa era reiniciada e, não demorava muito, terminava, pois aqueles presentes ao recinto recolhiam-se cedo para desfrutarem do sono dos justos, haja vista que, no outro dia, a faina diária recomeçaria logo ao cantar do galo.
Assim, vovô demorava-se comumente no Morgado aproximadamente dois dias, retornando em seguida para o aconchego de seu sossegado lar. Ao chegar, por volta das ave-marias, dirigia-se incontinenti ao amplo quintal, que fazia às vezes de curral, cuidando com desvelo dos seus animais, todos afeiçoados a ele como crianças pequenas devotam-se ao pai extremado, dando-lhes banho e alimentando-os convenientemente. Feito isto é que ele se dava ao luxo de adentrar a casa, cumprimentando ternamente minha avó Marieta, dizendo-lhe calmamente das novidades, indo lavar-se para posteriormente jantar uma saborosa sopa de carne, quentinha, com legumes frescos boiando por toda extensão da panela.
E eu, calado, na outra ponta da mesa da cozinha, com um nó indigesto no peito, observava tudo àquilo, a afeição única do insuperável casal, meus inesquecíveis avós, e o amor que deles emanava, perpassando todo o ambiente, como se soubesse que a felicidade que vivenciava naquele momento não duraria mais que um piscar de olhos na vã e louca corrida da cronologia terrestre.
O aprendizado valeu a pena! Jamais esqueci uma só lição dos sábios ensinamentos de meus avós que pregavam a humildade, a honestidade e a serenidade de espírito como potentes faróis para iluminar a jornada. E absolutamente nunca esquecerei a maneira estoica como meu avô encarava as vicissitudes da vida, sem receios ou lamentações.
No Morgado do Céu, tecendo sonhos e nos esperando em definitivo, quando, enfim, fizermos a última viagem, esperançosos na certeza do reencontro tão esperado, vovô Raimundo Anastácio e vovó Marieta devem estar reunidos, felizes, ao lado do filho amado Francisco, que partiu tão jovem para morar nas estrelas, antecedendo-os na Casa do Pai, na companhia também da amada filha, Margarida, minha querida Mãe, que tanto alegrou nossos dias terrenos - e certamente continuará alegrando-nos na eternidade. 
Avelar Santos (Professor e Escritor)