domingo, 15 de outubro de 2017

O CORAÇÃO DO BEIJA-FLOR, POR CHARLES NUNES DE MELO

A pessoa ao engolir o coração de um beija-flor, após a morte por baladeira, ficaria com uma pontaria infalível, dizia os meus ancestrais. O beija-flor era comum nas matas e terrenos (e jardins) de Camocim, como o vem-vem, o galo-campina, a sabiá, o corrupião, o papa-capim e a graúna. Naquela época, uma das armas mais usada pela molecada para abater passarinhos era a baladeira feita de um galho de árvore em forma de “V” com uma borracha nas duas extremidades, que ao ser esticada lançava a bala (no caso, uma pedra) na direção e alvo desejados.
Cresci ouvindo dos mais velhos a lenda do beija-flor e acreditava nela, pois como era um péssimo atirador, e, consequentemente, nunca acertava os pássaros maiores, imaginem os pequeninos.
Eu gostava de caçar passarinhos com os colegas, pois esse era um dos divertimentos mais presentes na minha infância naquela maravilhosa cidade. Lembro-me que as melhores caçadas eram nas matas do bairro da Brasília, Olinda e nos quilômetros da extinta ferrovia do ramal Camocim-Sobral, onde existiam muitas árvores e a quantidade de pássaros era grande.
Um amigo meu, Paulo, vulgo “pão com ovos”, era um dos meus principais companheiros de caçadas. Esse apelido era devido ele ter a mania de esconder o alheio, como dizia em Camocim. De manhãzinha, era costume os padeiros deixarem os pães nas portas das casas dos fregueses dorminhocos. Certo dia quando o sol ainda não saíra, o Paulo levou para sua casa os pães encontrados na porta da residência da dona Fransquinha. Ele também carregou ovos das galinhas do quintal da dona Maria. Um dos colegas, criativamente, sabendo dos dois episódios, colocou o apelido de “pão com ovos”. E pegou.
Eu e Paulo, numa manhã ensolarada de dezembro, férias escolares, fomos para mais uma caçada. Algo me dizia que seria um dia proveitoso, ou seja, nossa caçada seria exitosa. Dessa vez, a aventura seria na rua Duque de Caxias, no bairro Brasília. Num terreno bastante arborizado, onde havia alguns passarinhos, o meu amigo Paulo conseguiu ver um beija-flor que voejava próximo de duas graúnas e dois corrupiões. Eu até poderia tentar matar os pássaros maiores, mas meu objetivo era atingir mortalmente o beija-flor. Acompanhamos os movimentos do animalzinho no ar até pousar num galho de um frondoso cajueiro. Então, preparei a arma para efetuar o tiro. Procurei no chão uma pedra ideal para o abate. Coloquei-a com bastante calma e jeito no couro da baladeira, mirei e atirei. Foi um tiro certeiro, fatal. Confesso que não foi difícil abater o bichinho. A nossa alegria foi esfuziante ao vermos o beija-flor bater no solo sem vida. Gritos e abraços coroaram aquele momento de vitória.
A segunda parte da aventura era extrair o coração do passarinho e engolir. Ocorre que não tínhamos nenhuma faca por perto. O Paulo teve uma ideia. Encontrou um caco de vidro nas proximidades, e, assim, fez a pequena cirurgia. Com aquele instrumento cortante, o meu amigo Paulo extraiu o coração do passarinho como bastante mestria.  Depois, eu engoli o orgãozinho com bastante facilidade. Apesar de gosmento e do gosto amargo, a vontade de me tornar um bom atirador prevaleceu naquele momento. 
Aquela aventura foi emocionante para nós desde o começo até o seu glorioso desfecho. Mas, ocorre que, a despeito de eu ter cumprido o ritual da lenda em todas as suas etapas, resta-me dizer que eu não me tornei um bom atirador em hipótese alguma. Decerto, piorei na pontaria, pois a partir daquele momento nunca mais consegui abater um passarinho sequer.
Charles Nunes de Melo