domingo, 30 de junho de 2019

GAIVOTA, POR AVELAR SANTOS

No princípio era o Verbo – e, por Ele, todas as coisas foram feitas! 
Há muito tempo atrás, quando o mar, menino travesso, cismava de avançar, nas grandes marés, sobre a cidade, espreguiçando-se, por entre algumas ruas e becos, indo e vindo sem se cansar, dando “bom dia” molhado aos transeuntes que passavam pelo centro, próximo à Agência dos Correios, e, também, aos poucos moradores das redondezas, havia casebres pontilhando a orla marítima de Camocim, que olhavam, sem emoção alguma, a beleza e o brilho incomum da Ilha da Testa Branca, incrustada, rainha absoluta, na imensidão daquela parte feliz do grande Oceano, onde pessoas humildes e trabalhadoras, a maioria pescadores, passavam seus sofridos dias, vagando a esmo por este mundinho de meu Deus, sem, entretanto, nenhuma delas, esboçar querer partir logo desta para melhor, apesar de todas as atribulações diárias e indizíveis sofrimentos.
Em uma dessas miseráveis habitações, morava o mestre Bonifácio, homem de raras palavras e de pronta ação, de fibra invejável, curtido pela inclemência do sol e pelos atropelos da vida, nos seus azeitados quarenta e dois anos, recém-completados, que sustentava a família, mulher e cinco filhos pequenos, com o incansável trabalho cotidiano de comandar uma esguia e ágil embarcação, que se aventurava, com seus três tripulantes, na inigualável costa camocinense, saindo, anônima, de mansinho, espiando as lamparinas celestes, invariavelmente quando todos os galos do mundo ainda dormiam, sem se lembrarem, marotos que eram, de anunciar a chegada da manhã, e, lá pelas três da tarde, hora nona bendita para a ingrata humanidade em que Cristo foi dolorosamente crucificado, no Calvário, ela estava de volta, arfante, orgulhosa, trazendo uma impressionante variedade de peixes, especialmente saborosas pescadas amarelas, ciobas, serras e cavalas, como nenhuma outra de suas irmãs siamesas jamais fizera. 
Certa feita, pesadas nuvens escuras tingiam o horizonte, prenunciando o pé d’água iminente. Já avistando, ao longe, com olhos de míope, embaçados, a silhueta benfazeja do Farol do Trapiá, a Gaivota foi surpreendida por enormes ondas, que brincavam com ela, sem pressa, junto com o vento, fazendo-a despencar perigosamente em abismos pavorosos abertos nas águas profundas, debatendo-se, aprisionada, contra o fragor - e a volúpia - das ondas. Com suas asas incapacitadas de baterem compassada e fortemente, impedindo-a por completo de sair daquela angustiante situação, debalde foi o inaudito esforço dos pescadores - e a magistral habilidade demonstrada pelo Bona.
Por uma eternidade, a canoa, cansada, pobre infeliz, lutou ingloriamente contra as ferozes forças da Natureza! Quase riscando a ponta da barra, com a vela branca inteiramente rasgada, rangendo, gritando, clamando piedade aos céus, rompendo o último Rubicão para chegar ao lar, não resistindo mais ao galope tresloucado do mar, um cavalo indócil que disparara em fúria ensandecida, transformando a líquida planície esverdeada em montanhas cristalinas assombrosas, cujos vales de lágrimas se abriam a seus pés, a Gaivota veio, ali mesmo, para desespero de todos os seus ocupantes, que se viam impotentes em lutar contra o poderoso Leviatã, debater-se em vão, entrar em agonia estertorosa, final, entregando-se sofridamente nas mãos cruéis do carrasco destino.
No mar agitado, os homens tentavam manter a calma, pois sabiam que poderiam sucumbir a qualquer instante se gastassem desnecessariamente energia. Assim, esforçavam-se para acomodar músculos e mente em sintonia perfeita. E rezaram para um milagre acontecer.
À noitinha, resgatados por um barco pesqueiro que demandava ao porto, assustados pescadores chegaram a terra.  
Chamado que fora repentinamente a navegar em outras águas, mais longínquas e perenes, mestre Bona não se encontrava entre os sobreviventes. 
Na madrugada seguinte, esquecendo a tragédia recente, represando medos e quaisquer outras preocupações, as valorosas velas de Camocim saíam novamente para pescar.
Avelar Santos (Professor e Escritor)