domingo, 14 de julho de 2019

"O TREM FANTASMA", POR AVELAR SANTOS

No batente da porta de casa, a cada abençoado finzinho de tarde, um menino franzino de aproximadamente seis anos de idade via mansamente o mundo girar. E, por conta do estreito ângulo de visão, e da engrenagem ainda imberbe de seu cérebro, achava-o demasiadamente pequeno e pacato.
Naquele dia 20 de dezembro de 1963, em Camocim, os presépios, as bolas coloridas e um clima de paz absoluta nos lares, anunciavam - circunspectos e solenes - que já estava bem perto o Natal. 
Dando voltas à imaginação, apertando e afrouxando, aqui e ali, os distintos parafusos da complexa máquina da mente, o garoto pobre sonhava com o presente que o bom velhinho traria para ele, rezando a todos os santos (conhecidos e desconhecidos) para que fosse um trem de madeira.
Esta obsessão do pequerrucho pelo singelo brinquedo era facilmente explicada pelo fato de seu pai ser ferroviário da velha e boa estirpe, trazendo, há gerações, carvão e óleo nas veias, e de ele contemplar diariamente, do seu cantinho solitário, a cheirosa e encantadora Maria Fumaça elegantemente vestida dirigir-se à Gare da elegante e imponente Estação Ferroviária, que ficava defronte à sua humilde residência.
Senhor de tudo, Sua Majestade Imperial, o Trem, era avesso confesso a relógio de ponto e horários pré-determinados, no que ele fazia muito bem, convenhamos, pois isto é mesmo uma grande chatice, não se apressando nem um pouco em chegar ao seu destino final, mantendo, por princípio linear de ilibada conduta, suas passadas calmamente cadenciadas, rítmicas, regulares, sem pressa alguma, sem se cansar, em absoluto, nem acelerar demasiado seu coração, mantendo o compasso, tendo como estímulo permanente para esse seu comportamento, digamos, atípico, o ditado popular que dizia que devagar se vai ao longe.
Ciente de sua importância histórica, de sua capacidade férrea de bem cumprir o seu papel, transportando riquezas e vidas, todos os dias, por toda Terra da Luz, e, principalmente, sabedor de seu poder real e de seu impressionante carisma junto aos seus devotados súditos camocinenses, ele continuava tranquilamente naquela sua surrada batida, caminhando milhas e milhas, com arrojo e desprendimento, sem se importar minimamente com falatórios indesejáveis ou com algumas pragas cabeludas desferidas por certos passageiros burgueses mais apressados, que não viam a bendita hora de saborearem um delicioso coró cozido ou  quiçá uma suculenta sopa de carne no conforto aconchegante de seus abastados lares.
Ainda bem que a criança era paciente e, mesmo sem um pingo de sangue azul tingindo uma mísera célula de seu corpinho mirrado, metido frouxamente dentro de uma roupa nova dominical, encarava filosoficamente a demora da chegada do trem com olhos e ouvidos de Salomão.
Normalmente, o "paquete" apontava no “portão”, espécie de entrada particular de seu esfuziante Reino, nas proximidades dos Coqueiros, por volta das cinco da tarde, anunciando alegremente sua chegada iminente através de um longo e forte apito que reboava por Camocim inteira. Nisso, havia um rebuliço tão grande de pessoas correndo atabalhoadamente para lá e para cá, esbarrando-se loucamente nas esquinas, dirigindo-se apressadas à Estação, que alguns incautos visitantes destas perdidas plagas tremebebianas certamente poderiam supor, embora graças a Deus erroneamente, que aquilo finalmente se tratasse do fatídico e temido Armagedom.
A noite chegou rápida - e nada de trem! O menino, a pedido de sua amada Mãe, resolveu recolher-se, tristonho, à sua velha rede de algodão, com a inocente ideia de que seus sonhos seriam embalados por apitos plangentes e incensados devidamente pela piedosa e incansável Maria Fumaça, sua devotada e fiel companheira de sempre.
Cansado de tanta espera infrutífera, ele dormiu serenamente. Não houve, no seu sono, contudo, nem apitos nem tampouco o cheiro doce da lenha queimada na insaciável fornalha da gulosa Maria.
No outro dia, cedinho, ao acordar, o garotinho encontrou a casa num verdadeiro pandemônio, observando, sem nada entender daquilo, o corre-corre angustiado de familiares por toda sua imensidão. Aproximando-se dele, nesse instante, sua Mãe, pousando nele serenamente o amoroso olhar, contou-lhe, sem muitos pormenores, do que havia sucedido na véspera, da virada do trem – e de seu pai que havia quebrado algumas costelas e tivera escoriações pelo corpo, mas que havia sido medicado, devidamente enfaixado - e passava razoavelmente bem.
Naquele Natal não houve presentes! Reunidos em família, agradecemos infinitamente ao Altíssimo a suprema graça que ELE nos concedera de termos o papai conosco naquela data memorável.
A Estrela de Belém que, no passado, anunciou a vinda do Messias, brilhava forte em todos os recantos da encantadora cidadezinha - e a certeza do Menino-Deus, em nosso meio, fazendo-se humildemente nosso irmão, trilhando conosco, lado a lado, a suprema jornada, era algo tão palpável e maravilhoso, que aquecia sobremaneira os nossos corações, deixando-nos inteiramente reconfortados e felizes.
Depois disso, o menino relegou o trem de brinquedo, que tanto almejava ganhar, pobrezinho, na conta dos teimosos sonhos infantis fugidios e cansados.
Avelar Santos (Professor e Escritor)