domingo, 13 de outubro de 2019

"O VENDEDOR DE PENAS", POR AVELAR SANTOS

Quando o conheci, anos atrás, ele era um esforçado lavador de carros do baixo clero da cidade, doido por política provinciana, metido a fat boy, que, nos finais de semana, metamorfoseava-se, sabe-se lá por que cargas d'água, em desengonçado comerciante de galináceos. 
Na verdade, vendia de tudo: do peru ainda sem penas, passando pelos capotes, à galinha gorda, boa para virar canja, segundo seus sábios conselhos gastronômicos, servindo tanto para suprir a saudável dieta proteica das mulheres gestantes, bem como altamente recomendável àquelas senhoras “de resguardo”, principalmente se o filho fosse o primogênito.  
Por ter um topete escandaloso, misto de sioux e black feet, aliado ao fato de mercadejar aves, passaram a chamá-lo, sem cerimônia alguma, de forma mais intimista, de Zé Galo, coisa que, ao que parece, não o aborrecia nem um pouco, pois atendia à distinta clientela sempre com um meio sorriso no rosto mastim.
Certa feita, acuado pelo desmantelo notório do carro, caí na palermice suprema de pedir-lhe para dar um polimento no velho Escort que possuía, que já andava a contragosto, soturno, reclamando, num tom desafiador, por qualquer dá cá aquela palha, cuja carcaça, um dia de cor branca, estava ficando cinza de tanta poeira acumulada - e pelos achaques terríveis do Mr. Time.
Com seu jeito conversador, ao fim do serviço meia boca, pediu-me uma quantia absurda, estratosférica, coisa fora de propósito, menos pelo trabalho que tivera e mais pelo veículo que nada valia. Assustado com o valor cobrado, ponderei, com ele, que aquela seria a primeira – e última – vez que necessitaria de seus serviços.
Regateei, fui lá, vim cá, até que ele, acossado pela bravura indômita de minha  forte argumentação, reduziu pela metade a pedida inicial. Assim, fazendo cara de poucos amigos (algo que já possuo naturalmente), resolvi aceitar a sua “oferta” final. Paguei-lhe, enfim, desejando-lhe, baixinho, que fosse lavar carros, doravante, nos quintos dos infernos. Com seus olhos amendoados enormes, que inspiravam uma imediata compaixão, olhou-me inquiridoramente. Talvez para não perder o freguês que pensava ter (e que já havia perdido), nada falou, nada reclamou, nada aduziu para si.
Ao sair, com a flanela na mão, ainda molhada, desejou-me votos de sucesso e saúde, recomendando-me insistentemente que não negligenciasse com o “branquinho”, dando-lhe, pelo menos, miseravelmente, um “trato” mensal. Aquilo foi a gota de rum que faltava para encher o barril da minha paciência!
De tanto trabalhar, e segundo as más línguas por arranjar uma coroa bonachona,  sem muitos atrativos, um tanto quadrada, vá lá, mas cheia da grana, que cismou idiotamente em gostar dele, coitada, logo Zé Galo trocou sua encardida bike por uma moto Suzuki, seminova, não mais precisando suar tanto para atender seus fregueses desavisados, principalmente àqueles que residiam na periferia.
O romance durou cerca de três meses. Um dia, o Zé quis trocar sua Suzuki por um Fiat. Até aí, tudo bem. Acontece que ele não tinha um tostão furado e resolveu apelar novamente para a bondade da Rita (que não era certamente a Hayworth), sua companheira inseparável das belas noites camocinenses. Esta ficou uma arara quando ele teve a petulância de dizer-lhe isto, revirando os bolsos vazios da calça para ela própria constatar a veracidade do que dizia.
Arrependida de dar-lhe tudo, sem ter do seu amado uma contrapartida que realmente a fizesse sentir-se uma mulher feliz, ela resolveu  sensatamente sair de cena à francesa. Disse-lhe um sonoro não àquela proposta indecorosa e voltou, queixosa, ruminando mil pensamentos desabonadores, para Barroquinha, seu torrão natal, onde ele a conhecera, semanas atrás. Ia, calada, com um braço na tipoia, fruto de um acidente que quase mata o nosso herói, deixando-o com uma perna quebrada e algumas costelas avariadas.
Acontece que depois de tomar todas, o Zé, ao final da festa, no último dia dos festejos, pensando bestamente que era o multi campeão de duas rodas Valentino Rossi, mandou que a Rita subisse na garupa, e, a cem por hora, desafiando a Lei da Física que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, resolveu “meter” a moto justamente, numa determinada subida íngreme da estrada, entre dois carros (um que vinha e o outro que tentava ultrapassá-lo).
Deu nisto: hospital, dores atrozes, noites insones, remédios a perder de vista. E, agora, para piorar o que já era ruim, perdera também o seu cofre particular.
Dizem que o tempo cura os males da vida. Há um quê de verdade pueril nessa assertiva! Assim, pouco a pouco, o Zé foi se recuperando e, mulher vai, mulher vem, esqueceu completamente da sua antiga consorte. Ou quase! Ora, o atual mulherio (com quem ele desfiava suas mágoas e lia sem peias a cartilha do Kama Sutra) nada lhe dava, a não ser o óbvio. Money, nem pensar!
Bom garfo, da noite para o dia o Zé ficou paquidérmico. É certo que se empanturrava com guloseimas de toda espécie, degustando perigosamente, a qualquer hora, nos mais diversos lugares da urbe, pasteizinhos inocentes, de recheios primorosos de carne de gato, bem temperados (tudo para o abestalhado do cliente fingir que acreditava que o petisco era mesmo de primeira), regado a refrigerantes de marcas nada confiáveis. Para completar sua descomunal idiotice, almoçava invariavelmente panelada ou buchada, nos quiosques do mercado, lixando-se para os níveis nada recomendáveis do mau colesterol que, sem saber, estava na estratosfera. 
Resultado: 130 kg, pessimamente acomodados em 1,65 m, dificuldades para andar – e, obviamente, para encarar o “batente” diário. Achou-se perdido! Só havia uma tábua rasa de salvação. Se você, caro leitor, pensou na Rita, acertou em cheio. E, sem mais delongas, o Zé Galo aprumou-se todo para tê-la de volta ao galinheiro, digo, casa. E lá foi ele todo prosa, esticando asas, cantarolando músicas bregas, num sábado menor, para Barrocas, atrás de um refrigério para suas dores do corpo - e principalmente do bolso. Quando a Rita soube de sua chegada, esqueceu tudo que dissera para si mesmo acerca dos homens - e em especial do Zé. Vestiu-se às pressas – e foi ao seu encontro, radiante de felicidade. Desnecessário dizer que voltou naquele mesmo dia para os braços do  gajo,  equilibrando-se para não cair da motocicleta, rezando contritamente aos céus para chegarem vivos no aconchego do lar.
Depois de juras de amor eterno e alguns amassos mais ousados, não deu outra: ao cabo de oito meses, nasceu o Zé Galozinho, prematuro, feio, tal qual o pai, mas com um ar de doçura, de bem-me-quer, que, para sorte sua, pegou emprestado da mãe.
Que o bom Deus os abençoe misericordiosamente. 
Avelar Santos (Professor e Escritor)