sexta-feira, 6 de março de 2020

"CANTO A IPUARANA", POR AVELAR SANTOS

Ah! A mocidade! Tempo radioso - que não volta jamais - em que espalhamos sonhos, juntamos pedras para a construção de pontes onde os ideais possam transitar livremente, plantamos amizades profundas, cujas raízes permanecem fincadas em nós para sempre, e, como as águias, aprendemos a firmar nossas asas para voar bem alto, sem quaisquer receios de despencarmos dos penhascos.
Oriundo do seminário de Tianguá, onde estudara no ano anterior, cheguei a Ipuarana, encravada na Serra da Borborema, em Campina Grande-PB, numa tarde chuvosa e fria do dia 22 de fevereiro de 1970, sendo saudado inicialmente pela torre do relógio, emoldurada, ao longe, por uma névoa fina, cuja bela imagem nunca mais me saiu da memória, sendo recebido, no saguão de entrada, por frei Demétrio, que me deu calorosas boas vindas.
Meu pai, que me acompanhara em todo trajeto da viagem, após uma conversa reservada com o frade que nos recebera tão bem, ao despedir-se rapidamente de mim, segurando a emoção, que boiava súplice nos seus olhos, disse como eu deveria me conduzir no meu novo lar, e, abençoando-me, foi embora, deixando-me, ali, com uma imensa saudade de casa, meio sem jeito, sem saber o que fazer com a pesada mala de couro que levava numa das mãos.
Vendo minha aflição, estampada por inteiro no meu olhar vazio, cansado, frei Demétrio cortesmente pediu que eu o acompanhasse. Silenciosos, caminhamos pelos claustros, engolfados naquela bruma úmida, dirigindo-nos ao dormitório da ala leste, onde ele apontou para uma cama, a primeira da terceira fileira, a contar da porta, que seria doravante minha. Depois, chamando um aluno veterano que olhava os campos que se perdiam além do horizonte, pelas janelas abertas, mandou que ele me levasse até o subsolo, onde se encontravam os armários.
Quando fiquei sozinho, não me contive mais, chorando baixinho um riacho de sentidas dores, com a lembrança de minha mãe a me envolver num halo de luz, na véspera da partida, derramando copiosas bênçãos sobre mim, com sua voz doce, pausada, rogando a Virgem Maria que me afastasse de todo mal, falando-me de coisas do futuro que eu não compreendia.
À medida que os balões coloridos dos dias foram inflados, um a um, e com o tempo preenchido inteiramente pelos livros, e orações, comecei a ouvir distintamente o canto singular de Ipuarana, que me enternecia a alma, primeiramente nas alegres manhãs em que nos dirigíamos apressados às salas de aula, onde o tapete mágico do conhecimento era desenrolado pacientemente à nossa vista por insuperáveis mestres; depois, no almoço, ocasião festiva da confraternização franciscana, onde as rodas de conversa eram formadas diligentemente nas inúmeras mesas, que riscavam todo imenso refeitório, falando-se de tudo, numa algazarra feliz; à tardinha, após os estudos, o jogo de futebol, vendo a legião de eucaliptos alegrarem-se com as jogadas geniais, de alguns de nós, cujos ramos, sacudidos pelo irmão vento, que uivava forte, pareciam aclamá-las, deixando-nos cheios de orgulho; à noitinha, na capela, era hora de agradecermos ao bom Deus pelo dom da vida, com o cheiro do incenso invadindo cada fímbria do nosso eu interior, como se quisesse nos purificar, colocando-nos devidamente diante da Divindade, no ato sublime da adoração ao Santíssimo, algo que sempre me fascinava, e, contritos, rezávamos, suplicando à Trindade Santa que protegesse a Igreja, o bispado, a paróquia, as autoridades, as pessoas por quem éramos obrigados a orar, constituindo-se um momento solene de louvor – e de infinitas graças; à noite, após a ceia, havia o salão de jogos, as brincadeiras, o encontro com os amigos, com as horas passando rápido, até que o sono nos pegava de jeito.
Como era bom tudo aquilo, Paizinho do Céu! Éramos verdadeiramente felizes – e não sabíamos!
Hoje, após tantos anos, cada vez que retorno a Ipuarana, eu me deixo envolver por sua inebriante magia, voltando, por alguns instantes, que, paradoxalmente, tornam-se eternos, a ser criança novamente, desfrutando de suas delícias, do seu aconchego materno, único, com o pensamento voando ligeiro, espaçonave que arremete ao passado distante, permitindo-me vivenciar coisas tão ternas, belas, que se perderam, pobrezinhas, muitas delas, pelos caminhos da existência.
A ti, Ipuarana, meu apreço sem fim por tanto aprendizado, por me mostrar o maravilhoso fulgor do farol da fé, que aclara a escuridão, que, por vezes, nos rodeia, por me revelar principalmente a trilha estreita que nos leva ao Alto, para onde vamos, e, como nada posso te dar, como oferenda pelo que fizeste por mim, por nós, teus diletos filhos, deixo-te simbolicamente, minha amada, como prova maior do meu amor, o meu coração enterrado para sempre debaixo do velho Tambor, que, de modo algum cicatrizará a ferida - e deixarei de sentir dor.
Avelar Santos (Professor e Escritor)