domingo, 13 de junho de 2021

"O PURGAMENTO DA VACA", POR ARTUR QUEIRÓS

Ali pelo início da década de 40, do século XX passado, funcionou aqui em Camocim modesta farmácia no mercado público local, parte externa, lado leste ou nascente, montada de pequeno estoque de remédios, pois que seu proprietário, comerciante de poucos recursos também manipulava remédios caseiros, como se diz, no que era habilidoso o senhor Horário, e que o tratavam por “doutor”. Portanto, doutor Horário.

Bastante comunicativo e loquaz, o nosso doutor logo granjeou simpatias e amizades por aqui, mesmo vindo de outras paragens, sem se saber de onde. Engajou-se na luta pela vida, usando meios honestos de trabalho para o sustento de numerosa família. O “doutor” Horário apresentava na época, pela aparência, a idade de cinqüenta anos, boa idade para o trabalho.

Manipulava pílulas de várias espécies que eram apresentadas na cor prateada e destinada a várias mazelas do corpo, com preço bem acessível par aos de menor recurso. Daí a clientela que o procurava, pois que também, à moda antiga, boticário do interior, ouvindo a queixa do paciente, indicava-lhe o remédio a tomar, quase sempre do que tinha na prateleira, uma poção a manipular, além das milagrosas pílulas que fabricava. Muito funcionava o sistema, levando-se em conta o forte grau da suposta ciência de que se revestiam os sábios conselhos do “doutor” Horário..

Certa manhã, de um verão calmo e alegre, lá pelas oito horas, sol brilhante, o “doutor” Horário pôs uma mesinha ali na porta de sua drogaria e sobre ela colocou uma bandeja com muitas pílulas a tomar um pouco de banho de sol, para se tornarem mais sólidas e encorpadas.

É aí que entram as traquinagens diabólicas e destruidoras do secretário de confiança de Belzebu.

Naquela época a cidade não possuía calçamento e sim, um areão danado, sendo que na maior parte predominava um verdejante tapête de capim rasteiro, chamado grama e arbustos nanicos ornamentados de florzinhas silvestres. As sebes dos quintais que davam para a rua, se revestiam de ramagens virentes e doce aroma. Dentre as parasitárias se encontravam o melão São Caetano, cuja semente escarlate é apreciada pelos passarinhos e muito ao gosto do canôro sabiá que dela faz o seu repasto.


A salsa rasteira, que se expande em ramificações variadas, brindava-nos com a beleza de suas afuniladas flores rôxas, e cuja raiz sempre foi utilizada como depurativo do sangue. Também em terrenos baldios brotavam viçosos o matapasto e a manjerioba, esta, cuja semente medicinal era bastante usada pelos menos favorecidos em mistura com o café que torravam e passavam no pilão, para obterem maior rendimento sem modificar o sabor.


As ruas se tornavam lindas no inverno assim como um imenso tapête verde, ornamentado gentilmente de florzinhas do mato, olorosas e singelas em agradável e romântico conjunto, ar puro, discretamente perfumado e vivificante, muito diferente do ar poluído das grandes cidades, letais e irritantes que prejudicam e infernizam o dia a dia de seus habitantes. Nesse desvario, para onde vamos?


Pouca importância era dada a que a bicharada assim como bois, vacas, cavalos e suas éguas, bodes, ovelhas, porcos e burros, muito comuns até nos grandes centros, estes, dividissem conosco o espaço das ruas em que se encontravam. Não raro, nas saídas comuns de água das casas para a rua, porcos bem repimpados se refrescavam, posto que não transpiram pelos poros da pele, assim como os cães, que transpiram pela língua. A linfa ameniza-lhe o constante calor do corpo e os tornam felizes e imunes a parasitas. Vivem assim, despreocupados, esquecendo a canícula sufocante, ali no lamaçal que considera seu alcochoado e confortável leito, doce enleio.


Não existia o sistema de esgoto e nem o moderno saneamento básico, coisa que também serve para enriquecimento político, bem como ninguém se preocupava com as mazelas do mundo moderno de hoje nas grandes metrópoles, como surto de dengue, muriçocas não incomodavam, elas que nascem durante a noite e morrem no nascer do dia, além de outras novidades que chamamos viroses, com o que vivemos preocupados atualmente. Aqui e acolá pintavam mazelas de sarampo, papeira e sezão, apenas, o que era curado com quinino, que curava tudo.


Foi nessa conjuntura envolvente, que surgiu naquela manhã de sol brilhante, na porta da farmácia do “doutor” Horário a bonita “princesa”, vaca de estimação do Abêncio Araújo Batista, filho do conhecido velho Gulino, que na pia batismal recebeu o nome de Sebastião Batista de Araújo.  Era a “princesa” vaca de leite e estima, que após o desmame compulsório da antemanhã daquele dia ensolarado, ali na relva da praça do mercado, no local em está hoje aquele mercadinho vizinho ao central, pelo lado do Nascente muito baixo, mais parecendo um gato de cócoras.


Dando com a bandeja de pílulas brilhantes, a dardejarem-lhe os olhos com seus raios cintilantes do sol, emitidos pelo sistema caleidoscópico, a vaca não pensou duas vezes. Enquanto o “doutor” desviara por momento a vista, ao pastoreio do banho de sol das milagrosas pílulas, para atender a um freguês, a vaca do Abêncio passou-lhes a comprida língua e comeu-as todas, num abrir e fechar de olhos. Quando o “doutor” deu-se conta, somente encontrou a bandeja vazia, apenas rendilhada com a pegajosa baba inerente aos ruminantes, depois de comer a ração.


Não custou muito e o ocorrido alastrou-se entre os curiosos, o povo rindo da presepada da vaca do Abêncio que, tão logo tomou conhecimento do ocorrido, procurou o “doutor” Horário, danado da vida a reclamar-lhe aquela desgraça! Que sua estimada vaca iria morrer ante o cavalar  purgante e que o “doutor” teria que pagar-lhe o lamentável prejuízo, coisa que custaria caro, pois que se tratava de uma das melhores vacas de leite que possuía. Tinha boa mistura com o gado holandês, a sua chamada “Princesa”.


O “doutor”, surpreso e também bastante aborrecido com o seu prejuízo, teve a genial e salvadora idéia de confortar e demolir o Abêncio, daquele seu aborrecimento, muito zangado e com os olhos esbugalhados e flamejantes a saltarem-lhe das pupilas:

- Tenha calma, meu amigo, tenha calma! Você não vai perder a sua vaquinha de estimação, tenha calma! Abrindo mesmo assim, um maroto e desafinado sorriso, disse-lhe baixinho ao ouvido, por causa dos curiosos ao redor: - As pílulas eram fabricadas apenas com miolo de pão e muito bem caprichadas no envoltório de capeamento, em papel prateado.

O Abêncio mudou a cara feia e conseguiu sem muita dificuldade, um silencioso sorriso, também maroto, e retirou-se mais tranqüilo e calmo.

Moral: A fé é quem cura!

Artur Queirós (2003-07)

Autodidata, Artur Queirós era memorialista, escritor e jornalista.