domingo, 22 de agosto de 2021

CASO DE POLÍCIA (PARTE 2), POR INÁCIO SANTOS

Deolindo vendo que a lengalenga ia longe resolveu interpelá-lo:
_Qual o seu nome?
_Mané Bento, um seu criado.
_Seu Manoel! _Disse Deolindo: E o Sr? O que acha de tudo isso?
_ Manoel Bento retirou o pé de apoio, pigarreou umas duas vezes antes de responder. Abandonando a costumeira timidez:

_Ói seu Dr. Delegado, a minha muié, essa que taí, Celina, é uma muié honesta trabaiadeira, cuida bem dos fios, tá certo que é meio arreliada. Às vezes, ela se dana inté comigo, mas dessa vez, dotô, inté que a dianga tem razão, ora, pois ponhá um nome de gente num animal, só de picuinha; certo que o pobre do bicho é uma criatura de Deus Nosso Senhor. Também não tem curpa do dono que tem, pro mode que eu acho, que a muié tem razão pra tanta arreliação.

Celina, que enquanto o marido falava tentava se intrometer, entremeando palavras, e só era contida pelo olhar severo do delegado, já ia retomar o verbete, no qual foi cortada por Deolindo, que, vendo que não adiantava encompridar a história, retomando as rédeas da situação pediu silêncio e determinou:

_Pois muito bem, dona Celina e seu Manuel. A queixa está prestada e registrada. Já ouvi a sua versão, porém como à hora já é adiantada, a tarde ia sumindo, e a noite, não temos expediente, vou mandar o meu pessoal levar uma intimação ao... _Lembrou de perguntar o nome do vizinho, que motivava a confusão: _Como é mesmo o nome do dito cujo, o tal vizinho?

Manoel Bento fez menção de responder, no que foi ferozmente atropelado pela mulher.

_O nome do disgramento, dotô delegado, é um tal de ... _ parou e pensou _Leocádio Norato, mode que, ninguém conhece o peste assim, só pelo o apelido de Cadinho, e... _mais uma vez o delegado a interrompeu.

_Bom, está anotado. Fica marcado então para amanhã, às dez horas. A senhora dona Celina, e o seu Manoel Bento. Vamos ouvir o Sr. Leocádio, para resolvermos esta pendenga, embora eu lhe diga adiantado, dona Celina: -não existe Lei que possa proibir uma pessoa de colocar o nome que quiser num animal qualquer... Cachorro, gato, macaco, papagaio etc. Mas, está prestada sua queixa e vamos fazer o possível para resolver o seu problema. Até lá, nada de provocações e brigas. Estamos entendidos?

Como sempre, Celina tomou a palavra.

_ Espero mermo que o sinhô arrezouva, pro mode que eu não sei se vou agüentá aquele...

Deolindo não esperou mais. Foi logo se levantando e praticamente colocando-os para fora.

_Bom, então até amanhã!

Os dois saíram, ela falando pelos cotovelos, maldizendo, esculhambando, vociferando todo tipo de impropérios, e o marido, logo atrás, calado, de cabeça baixa, as mãos para trás, num passo mole de gente doente.

Assim que os dois saíram, o delegado Deolindo olhou para o cabo Armando, que da outra sala a tudo assistia e balançou a cabeça.

_Aí cabo! O que você achou de tudo isso?

_Olhe delegado! Eu que já pensei ter visto tudo nessa vida de polícia, e já estou nisso há muitos anos , respondeu o cabo.

_E agora? O que se faz? Não posso prender o tal Cadinho, por colocar o nome da mulher na sua cadela. Não é crime! A mulher está brava e isso não vai dar certo. Meu Deus! Que confusão! Só nos resta esperar até amanhã e seja o que Deus quiser.

Durante aquela noite, Deolindo acordou algumas vezes. O sono lhe fugia. Não conseguia tirar do pensamento o fato acontecido durante a tarde, e por mais que pensasse não atinava uma solução definitiva para o problema. Só restava convencer o tal Cadinho, através do bom senso. E se não fosse possível, metê-lo-ia na cadeia? Não podia... Qual seria a alegação? 
E mesmo que o prendesse, por um ou dois dias, não poderia prolongar a prisão visto que o mesmo não praticara crime algum, previsto por lei. E assim ficou torcendo para amanhecer e tentar, através da diplomacia, usando de sua autoridade, achar uma solução. No mais, era rezar para que tudo desse certo. Assim que o dia clareou, o delegado Deolindo pulou da cama, tomou seu desjejum, e foi para a surrada máquina de escrever. Ele mesmo bateu a intimação, assinou, chamou um dos soldados e mandou que fosse entregue imediatamente “em mãos”. Olhou para o relógio. Eram ainda oito horas da manhã, e o delegado se preparou para o embate, pois precisaria utilizar toda a sua experiência para que tudo fosse resolvido a contento...

Nove horas, e lá estava ele _ delegado_ sentado em sua mesa de trabalho, surpreendeu-se um tanto nervoso. Besteira, disse para si mesmo. Já resolvera tantas brigas, arengas, confusões, matutava Deolindo. É apenas mais uma, que diabo!? De repente, adentra à sala Celina (como sempre desgrenhada, o cabelo desalinhado o mesmo vestido surrado e encardido, falando sem parar). Logo atrás, o marido Manoel Bento, cabisbaixo, como se fosse para a forca, caladão, aquele jeito humilde do caboclo sertanejo.

_Bom dia! _ Saudou o delegado: Sentem-se! Estamos em cima da hora.
Celina nem ao menos respondeu a saudação, foi logo inquirindo:

_Cadê o tar atrivido, seu doto? Num era pro mode o discarado tá aqui também? Manoel Bento não sentou. Foi logo procurando o canto da parede escorando o pé e firmando-se numa perna, como parecia ser seu costume, e ali ficou calado, somente observando.

_Calma, dona Celina _Disse o delegado : _ Eu já mandei intimá-lo, vamos dar um prazo de dez minutos, se ele não vir então mandarei buscá-lo.

Deolindo mal havia terminado de falar, quando Leocácio (Cadinho) entrou na sala. Era um homem magro, ossudo, tez esbranquiçada, cabelos crespos e pretos, aparentava ter de quarenta e cinco a cinqüenta anos. Antes de alguém falar, Cadinho disse:

_Bem, doutor delegado, recebi o seu chamado e aqui estou para saber do que se trata!
_Discarado!. Fi do cão..._foi logo insultando Celina ao ver Cadinho.

Deolindo bateu na mesa com mais força para chamar atenção e alteando a voz disse: _Bom dia Sr. Cadinho. Queira sentar-se _Olhando sério para a mulher _A senhora saiba que está numa delegacia, portanto só fale quando for a sua vez, e nada de insultos, eu não permito. Certo!? Celina contraiu o rosto numa careta, deixando visível que estava contrafeita, mas ficou calada. O delegado voltou a inquirir Cadinho:
_Pois bem Sr. Cadinho, eu mandei intimá-lo, porque recebi uma queixa, contra sua pessoa...bem, é que ... Como vou dizer...

tartamudeou o delegado, mas logo em seguida recobrou o controle: _ O fato Sr. Cadinho, é que dona Celina, aqui presente, prestou queixa afirmando que Sr. colocou numa cadela, que o Sr. Cria, o nome dela... O Sr. Confirma?

_Ué! respondeu Cadinho com a cara mais deslavada, ué! Dr. delegado, isso é crime? Celina mais uma vez quis se intrometer, mas foi contida pelo olhar de Deolindo, que voltou a falar dirigindo-se a Cadinho;

_Não! Crime não é... Não existe no código, isto é, na Lei, nada que fale que não se possa colocar num animal o nome de uma pessoa.

No próximo domingo, a parte final 
Inácio Santos
(Radialista, Compositor, Escritor e membro da Academia de Ciências, Artes e Letras de Camocim)