sexta-feira, 24 de setembro de 2021

"A CASA DO SOL POENTE", POR AVELAR SANTOS

Uma chuva fina acaricia a flor da tarde camocinense, que, entristecida, vai se despetalando, lentamente, aos caprichos voluptuosos do vento, tecendo, com gratidão, singelos versos ao rei sol, dizendo-lhe que é chegada a hora de ele ir dormir.

Logo, as primeiras estrelas cintilarão, no céu, e o manto da noite cobrirá toda cidade, trazendo, consigo, de presente, um cesto grande repleto de poemas de amor, que enternecerá os canções dos aflitos, ofertando-lhes a pérola perfeita da paz.

Há pouco, caminhava a esmo pelas ruas, buscando encontrar-me comigo mesmo!

Perdido nos devaneios do pensamento, cujo novelo, por mais que eu desenrolasse, parecia nunca acabar, eis que os meus passos incertos levaram-me até uma velha casa, tão conhecida, debruçada, solitária, dócil ave de arribação, na varanda do tempo.

Voltada para o nascente, quando colhia, feliz, outrora, as conchas de luz das manhãs, ela me recebeu, com um carinhoso abraço, evocando doces lembranças, cinzeladas na alma, salpicando tudo de saudade, fazendo o riacho da emoção brotar ligeiro da fonte.

Sentindo um dor aperreada andando, sem pressa, no meu peito, e uma angústia infinita, que calava fundo a minha voz, meigamente ela tocou-me a face, procurando me acalmar, e, olhando-me nos olhos, que faiscavam centelhas de perdão, disse-me que iria ficar bem.

Enquanto escondia, envergonhado, as lágrimas que despencavam, pelo meu rosto, sulcado pelo arado dos anos, sem nada falar, ainda, vi a meninice acenar para mim, alegremente, pela última vez, como se soubesse da partida final.

Anoiteceu!

Com o passado carregando-me para bem longe, num tropel veloz, adentrei, por fim, como se sonhasse, o meu antigo lar, desfrutando do seu calor aconchegante, na companhia inigualável de meus pais, e irmãos, ciente de que a entrada mágica da caverna seria fechada para sempre.

De volta ao presente, cansado da vida, não reparei na presença de três anjos, que me abençoavam, rogando preces ao Senhor, nem tampouco ouvi o adeus da casa em despedida.

Avelar Santos (Professor e Escritor)
#Camocim142Anos 
Foto: Gerardo Neto