domingo, 5 de setembro de 2021

"CAMINHOS DO TEMPO", POR JOSÉ MARIA TRÉVIA

Na minha juventude, em Camocim, durante algum tempo trabalhei com meu pai em sua loja de eletrodomésticos. Eu fui o conhecido “faz tudo” daquele estabelecimento, exceto no que dizia respeito às tomadas de decisões em nível de compras de mercadorias ou efetivação de pagamentos. 
Eu varria, espanava, limpava, engraxava as portas de aço, vendia, fazia entrega, cobrava, montava móveis, máquinas de costura, bicicletas, velocípedes, carrinhos de bebê, dentre outros, havendo tempo, ainda, para fazer as minhas tarefas do colégio e relaxar, à sombra do Ficus Benjamin, defronte a loja, observando os transeuntes que passavam sem nenhuma pressa ao largo da então espaçosa Praça Pinto Martins, de antigamente.

Esse período, em que fiz parte dos trabalhos na loja, teve início na tarde de uma sexta-feira, dia 13 de agosto de 1965, data esta que, para os supersticiosos, indicaria mau-agouro. No entanto, para minha felicidade, mal algum recaiu sobre os meus ombros, tendo eu recebido como uma bênção que repercutiu favoravelmente pela minha vida afora. 

Naquele meio de tarde, adentrei à loja, encontrando meu pai concentrado em sua leitura, burlando a monotonia. Sentado em sua cadeira dotada de repouso de braços e provida de dispositivo rotatório, ele lia uma de suas revistas preferidas, talvez a Seleções ou O Cruzeiro, num tempo em que receber diariamente o jornal era privilégio de quem morava nas cidades grandes. 
Era costume meu, ao chegar à loja, aproximar-me do seu birô, sem me pronunciar, mantendo-me em silêncio, até que ele volvesse o olhar, quando, então, eu lhe pedia a bênção. Havia, também, outro detalhe que eu e meus irmãos havíamos aprendido e que, misteriosamente, funcionava sempre que precisávamos abordar meu pai: Jamais lhe dirigíamos a palavra quando ele estava lendo e, obrigatoriamente, usando óculos. Eram regras que se impuseram silenciosamente e eu aprendera a respeitá-las ao longo daqueles anos de convivência.

A nossa relação ultrapassara um período não muito agradável, mas eu havia feito progressos naqueles últimos sete meses, resultado de minhas tentativas para melhorar o clima existente entre nós durante o período de quase um ano em que mantínhamos apenas diálogos curtíssimos e poucos contatos. 

Todo este amplo espaço de tempo, a que especificamente me refiro, teve início nos primeiros meses de 1963, quando retornei a Camocim, após minha estada de um ano na Marinha. Eu retornara encantado com a boemia, quando o mundo da juventude se abrira precocemente para mim, com todos os encantos e paixões em uma das melhores fases da vida. 

Atribuo, principalmente a mim, a culpa por estas fases de fracassos temporários no relacionamento com meu pai, quando os seus posicionamentos contribuíram, mas não foram soberbamente determinantes para tais distanciamentos, haja vista que, após algumas mudanças comportamentais que assumi, fatos extraordinários aconteceram, culminando com um convite, dele mesmo, vir mudar a minha vida num prazo relativamente curto.

E, assim, dentro do contexto de fatos que me propus a historiar, ali estava eu, recostado a uma máquina de costura, pensativo, observando a calmaria da praça. O sol escaldante daquela hora queimava o Capim de Burro que fazia as vezes da grama inexistente onde deveria ser o jardim da praça mal cuidada. De repente, afastando alguns papéis de sobre o birô, a fim de acomodar a sua revista, meu pai quebra o silêncio:

- O seu colégio é só no turno da noite?

- É, respondi laconicamente, fazendo um gesto de assentimento com a cabeça e me aproximando um pouco mais, demonstrando atenção e curiosidade.

Ele voltou a olhar os papéis sobre o birô, meditando, e sentenciou, com algumas pausas:

- Hoje é sexta-feira... Bom... A partir de segunda-feira, quero que você venha trabalhar aqui, comigo. Você fará o seu trabalho e, aqui mesmo, prepara suas tarefas do Colégio. Traga seus livros.

- Está certo, respondi com simplicidade, mas com uma enorme felicidade no coração. Era a oportunidade que eu precisava para ocupar um espaço vazio existente no meu dia a dia e que insistia em permanecer entre eu e meu pai. Era um chamamento, embora com características de uma “convocação coercitiva” de meu pai, a qual, por paradoxal que possa parecer, veio a se constituir num enorme passo adiante para a minha vida futura. Naquele momento eu tive a certeza de que aquela manifesta dádiva de Deus não seria desperdiçada. 

Passados todos esses anos, ainda hoje sou grato a meu pai pelo necessário rigor com que me indicou os caminhos a trilhar. O futuro iria confirmar o resultado de um compromisso que eu havia firmado, comigo mesmo, numa segunda-feira, dia 28 de dezembro de 1964, quase oito meses anteriores àquele momento que eu estava vivenciando. Foi uma atitude de comprometimento que eu havia assumido colocando um ponto final em um período que precisava ser deixado para trás.

Quanto às “situações oportunas” a que me referi, relacionadas com as abordagens objetivando dialogar com meu pai, também funcionavam quando direcionadas à minha mãe para pedir permissão para algo. Entretanto, a estratégia era diferente, pois além de utilizarmos os momentos em que ela não se encontrava atarefada, nossos intentos eram praticados durante as pausas que ela fazia para descansar de sua lida e fumar um cigarro Continental. 

Sem exercermos nenhuma apologia ao danoso vício do cigarro, observávamos que a tal fonte de nicotina, e outros elementos contidos em sua composição, possuía um estranho poder de acalmá-la, ou acalentá-la, deixando-a vulnerável ao convencimento para coisas simples, como pedir permissão para ir tomar “banho de mar”, termos que usávamos em referência às nossas tão aguardadas idas à praia, constantemente aproveitadas para saltar do cais ou do trapiche.

Aqueles foram majestosos anos, quando vistos pela ótica de quem passara a infância na liberdade de uma cidade interiorana e gozara a plenitude de sua juventude, sem o medo e as ameaças que espreitam o cotidiano dos novos tempos. Foram momentos bem guardados na memória e incrivelmente perpetuados em nossas retinas, compondo histórias que ainda estavam sendo construídas e agora se apresentam prontas para ser contadas.

Texto extraído do livro "Memórias de um Saudosista", de José Maria Trévia. 
A obra, que pode ser adquirida por apenas R$ 20 reais, está à venda na Associação Amigos das Artes de Camocim (AMARTES), cuja sede está localizada ao lado do prédio da Estação Ferroviária. Mais informações: (88) 9 9633-6526