domingo, 12 de setembro de 2021

"RUA DO EGITO", POR JOSÉ MARIA TRÉVIA

Rua do Egito... Era assim que, nos meus tempos de menino, era denominado o trecho da Rua 24 de Maio, a partir do muro que limitava o terreno pertencente à Estrada de Ferro, a conhecida Rede Viação Cearense (R.V.C.) de então. 

Rua do Egito... Nunca tive a oportunidade de saber por que assim era chamada, mormente agora que esse nome se ocultou no tempo e já desapareceu da memória de muitos. Rua sem calçamento, calçadas irregulares e algumas bem altas como a dos senhores Augusto Regino e Manoel Artur. Também de altura considerável era a calçada de Dona Vitória, a primeira professora de alguns de meus irmãos mais velhos. Arborização, quase nenhuma existia, a não ser os Ficus-Benjamins de Dona Júlia e do Sebastião da Cachaça.


Não obstante tantos anos transcorridos e a minha tão tenra idade quando ali vivi, lembro-me muito bem de muitos de seus antigos moradores, principalmente do “seu” Sebastião da Cachaça, que carregava o apelido por ser proprietário de um depósito dessa bebida. E no interior é assim, o produto ou a profissão apelida o homem e o torna conhecido, fazendo com que, na maioria das vezes, esqueçamos até mesmo o seu verdadeiro nome. E dele ficou, também, em minha lembrança, a festa de queima do Judas, feita todos os anos, à frente de sua casa, com direito a banda de música e tudo que a tradição recomendava. 

A festa varava a madrugada e as manifestações de alegria eram ouvidas até ao final da rua, onde moravam Dona Conceição Sampaio e o Quecê, o velho “cambista”, que, de caderneta na mão, visitava seus “clientes” de porta em porta, vendendo as “pules” do jogo do bicho. Era o vendedor de esperanças para aqueles que persistiam na busca de uma renda extra apelando para a sorte.

Nas tardes de carnaval, a rua ficava repleta de papangus, em frente ao depósito de cachaça do “seu” Sebastião. Mas, eram “apenas” papangus, alegres e esmolambados em suas fantasias baratas do carnaval irreverente do povão. O luxo das tardes mominas ficava mesmo por conta da passagem do Bloco do Bandu, que fascinava todos com o seu estandarte e suas fantasias de laquê multicoloridas. O tempo levou para bem longe a alegria contagiante daqueles papangus que arrastavam pelas ruas a animação brejeira dos carnavais do Camocim de antigamente, e que, a exemplo do Bloco do Bandu, é hoje, apenas, uma lembrança sutil na memória dos saudosistas de minha terra natal.

Rua do Egito... E lá, também, estava a minha casa, ostentando o número 361. Casa simples, sem forro, piso de tijolos de argila queimada, terraço pequeno e um grande quintal, do qual ainda guardo inúmeras e saudosas lembranças. Em frente, por trás do muro da Estrada de Ferro, erguia-se o imponente cata-vento que, quase sempre, estava trabalhando. Sentado na janela, eu o observava durante longo tempo e me distraía, buscando compreender, porque ele sempre olhava na direção de onde o vento soprava.

E fiz do alto da janela o meu local preferido de observador das idas e vindas dos transeuntes, nos seus mais diversos comportamentos e com os mais diversificados objetivos, e dos quais, com o meu olhar curioso de criança, tirava as mais estonteantes conclusões. Por ali, na verdade, passavam muitas pessoas que marcaram por algo inusitado, como aquele homem manco que, um dia, passou carregando um tatu, vítima de sua caçada, dependurado por um barbante de tucum. 

E esta visão alimentou, por vários anos, um grande medo daquele homem esquisito, aleijado e matador. E, ainda, o caso de um menino com uma trouxa de roupas na cabeça, a quem fiz uma pergunta por um simples desejo de dialogar, cuja resposta veio em forma de ameaça pela ofensa que, involuntariamente, eu lhe dirigi. Mas, aí, já são outras histórias... Que, também, merecem ser contadas.

Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado", de José Maria Trévia. 
A obra, que pode ser adquirida por apenas R$ 20 reais, está à venda na Associação Amigos das Artes de Camocim (AMARTES), cuja sede está localizada ao lado do prédio da Estação Ferroviária. Mais informações: (88) 9 9633-6526