domingo, 24 de outubro de 2021

"A BORBOLETA DA SORTE", POR AVELAR SANTOS

Nos tempos antigos, acreditava-se que as borboletas eram insetos mensageiros. As coloridas traziam a alegria, a fortuna, enquanto as pretas, quando apareciam,  interpretava-se como sendo um indicativo de morte. 

Dessa forma, havia um forte contraponto de opinião espelhado na simbologia das cores das asas desses lepidópteros na cultura ancestral de muitos povos. 

Na Europa da Idade Média, a superstição galopava, sem quaisquer rédeas, por todos os recantos. 

Nesse ínterim, nos países ibéricos, Espanha e Portugal, a borboleta escura representava o espírito de uma criança que falecera sem ser batizada. 

Nas regiões nórdicas, por sua vez, ela era vista como a encarnação das bruxas, trazendo, por isso mesmo, supostamente, maus agouros.

Embarcados na canoa que navega ligeiro, carregando, debaixo de seu branco velame, a ampulheta mágica da cronologia dos anos, aportamos, sãos e salvos, na modernidade. 

Mais precisamente no ano da graça de 1965!

Por essa época, que faiscava ouro, onde os bons costumes ainda imperavam, no cotidiano das pessoas, o menino completara oito anos. 

E, aqui e ali, via como seu pai se alegrava cada vez que uma "giant black butterfly" dava o ar de sua graça, naquelas risonhas manhãs, emoldurando, como belo adorno natural, as paredes nuas da velha casa onde moravam.

Nessas ocasiões, percebia que um sorriso infantil chispava nos seus olhos, cujo brilho fazia a flor da esperança desabrochar fagueira pelos caminhos, espargindo bênçãos sem fim no lar empobrecido.

E o mais curioso é que sempre uma coisa boa realmente acontecia, no desenrolar dos dias subsequentes, no mais das vezes um dinheiro extra que ele nem supunha mais existir, oriundo de gratificações por desempenho de função na saudosa Rede Viação Cearense - RVC.

Muito embora meu pai fosse um católico extremado, do tipo que vai às missas e reza o terço, diariamente, trazia dentro si algo também de supersticioso.

Talvez por conta disto, a borboleta e ele pareciam se entender tão bem,  porquanto, contrariando a crendice popular, nunca falhava o luzir especial de um novo dia quando ela distendia delicadamente suas asas sobre nós.

Certa feita, perto do Natal, tempo sublime em que os anjos descem dos céus, irmanando-se aos homens de boa vontade para louvarem, em uníssono, o nome do Menino-Deus, cantando, sem parar, "Gloria in Excelsis Deo", lembro-me que papai chegara de Crateús, tarde da noite, no trem que chegara atrasado, trazendo consigo, além da usual malota desbotada de couro, muitos embrulhos.

Uma semana antes, quando uma grande borboleta apareceu, de repente, escurecendo a sala de cor, ele recebera a visita de um amigo ferroviário, que lhe dera boas novas acerca da homologação da ascensão funcional, que tanto esperara, constando o seu nome no rol daqueles que fariam jus ao recebimento de uma vultosa diferença salarial.

E foram tantos sorrisos, abraços, preces contidas de agradecimento ao Senhor, por aquele momento feliz,  degustando ambos uma saborosa cachaça serrana, que minha mãe interveio, chamando-nos para o jantar.

Naquele Natal, ao acordarmos bem de manhãzinha, com o alvoroço das galinhas, que cocoricavam, satisfeitas com a vida, abeirando a cerca do quintal, solícitas aos afagos do sortudo galo, recebemos uma infinidade de presentes.

E os nossos sonhos de criança foram muito mais luminosos, resguardados, na sua essência grandiosa, pela segurança única daquele enorme casario em que  vivíamos.

Hoje, quando avisto borboletas, embelezando os ares, tecendo arabescos do Taj Mahal, ao acariciarem as flores, voejando pelos jardins, remonto à mocidade num piscar de olhos.

E eis que lembranças tão ternas, esquecidas, pobrezinhas, por entre as dobras das vestes gastas da velhice, fazem guarida, novamente, no meu coração, permitindo-me desfrutar, por instantes fugazes, da  singeleza de coisas vividas em família que se eternizaram na mente.

Amanhã o sol vai raiar de novo! 

Oxalá, no Paraíso, haja borboletas em profusão, colorindo tudo, por entre perfumadas rosas, à beira de riachos, que serpenteiam, graciosos, naquela imensidão, trazendo paz aos corações daqueles que  lá se encontram.

Sua bênção, meu pai!

Avelar Santos (Professor e Escritor)