domingo, 7 de novembro de 2021

"O ARATANHA", POR JOSÉ MARIA TRÉVIA

Durante as primeiras décadas do século XIX, o porto de Camocim foi pródigo no aporte de navios provenientes, não somente de outras regiões do Brasil, mas também de diversos outros países. 

Eram navios exclusivamente de carga, ou mistos, pertencentes, dentre outras Companhias nacionais e estrangeiras, ao Loyde Brasileiro ou à Companhia Nacional de Navegação Costeira. 

O Loyde representava a navegação de longo curso e detinha o monopólio no Brasil, enquanto a Companhia Nacional de Navegação Costeira estava identificada com a navegação de cabotagem. 
Esta armadora, carinhosamente chamada de Costeira por aqueles que trabalhavam nas atividades de navegação, viveu o seu apogeu no período de l920 a 1950, coincidentemente, a mesma época em que Camocim teve os seus melhores anos, em termos de movimentação de seu porto.

Inúmeras foram as embarcações de médio porte que, ao longo da primeira metade do século XIX, fizeram a vida do porto de Camocim, trazendo açúcar, bebidas, tecidos e conservas, e zarpando, de conformidade com a época, com sal, farinha, algodão, castanha de caju ou cera de carnaúba. 
Esse período, que abrigou as três décadas áureas e coroaram a plenitude dos bons tempos, assistiu à efervescência pela presença constante de navios em nosso porto, exportando nossas riquezas e desembarcando tudo aquilo que precisávamos. 

Apenas para exemplificar alguns navios, dentre aqueles que ainda navegam na minha memória, cito os cargueiros Patuca, o Aratanha, o Araribá, o Guaraúna, o Itataia, o Rio Piancó, o Rio Jaguaribe, o Rio Solimões, o Areia Branca e o Barão de Jaceguai. 

Entretanto, para a história de Camocim e para júbilo de seus filhos, há um navio, dentre estes, que deixou seu marco pela iniciativa tomada pelo seu comandante, diante de um desafio que poucos teriam a coragem e a determinação para vencê-lo. E esta é a causa que nos faz destacar o nome do navio e enaltecer a façanha de seu comandante.

No ano de 1935, a barra de entrada ao porto de Camocim foi considerada assoreada e impossível de ser utilizada pelos navios de médio porte que, até então, tinham nela a navegabilidade assegurada. 
O dito assoreamento foi confirmado, à época, por um prático conhecido por Marinho, que, em uma de suas manobras, encalhou um navio cargueiro na entrada da referida Barra, nascendo, daí, a teoria errônea de que já não havia ali uma profundidade suficiente para a navegação daquelas embarcações. 
E esta convicção prevaleceu durante quinze anos, levando a que, durante todo esse tempo, diversos navios deixassem de aportar os trapiches de Camocim. Os mesmos, por medidas de segurança recomendadas pelo citado prático, detinham-se na entrada da barra, onde toda a sua carga era retirada e transportada em alvarengas para o cais de acostamento. 

Isto gerava um significativo aumento de mão de obra, elevando de forma considerável o custo do transporte de mercadorias para aquela região, através do porto de Camocim. Segundo o registro de jornais da época, a Empresa Inglesa Booth Line era a principal beneficiária dos lucros provenientes da alvarengagem, tendo em vista que todo esse trabalho era realizado, exclusivamente, sob sua administração, com a utilização de suas próprias alvarengas ou por ela contratadas.

Havia, entretanto, quem duvidasse do impedimento à operacionalização dos navios naquele trecho, considerando que a crença não era respaldada em fato devidamente comprovado, até porque a ocorrência de um encalhe poderia ser conseqüência de um erro de manobra do prático ou, como alguns acreditavam, acidente proposital em defesa de interesses escusos. 

Alguns comandantes de navios e outros práticos do porto, além de velhos marinheiros conhecedores da barra e do estuário, comungavam das mesmas desconfianças, contrariando frontalmente a opinião dos que condenavam as condições do porto. Mesmo assim, somente após a transcorrência de todos aqueles anos, a ousadia de um comandante veio confirmar que era falsa a idéia da inexistência de profundidade suficiente para embarcações de 16 pés de calado.

Na tarde do dia 30 de janeiro de 1950, uma multidão acorreu às praias e à área do porto, para testemunhar o histórico retorno do navio ao atracadouro de nossa cidade. O Aratanha, pertencente à Companhia Nacional de Navegação Costeira, ostentando a brancura de sua cruz-de-malta na enorme chaminé preta, e a imponência de seus 96 metros de comprimento, invade a Barra de Camocim e navega através do canal natural do estuário. De sua cabine, o comandante Heitor Theberg e o prático Lopes Filho, como timoneiro, põem por terra a lenda da inavegabilidade do velho porto.

Durante os vários anos que se seguiram, o Aratanha e diversos outros navios de seu porte continuaram a aportar os trapiches, em Camocim, até que o abandono condenou aquele porto, à condição restrita e frustrante de suportar, apenas, os pequenos barcos pesqueiros. A indiferença do poder público, no que dizia respeito às providências necessárias de um trabalho sistemático e preventivo, a fim de evitar o assoreamento do canal, levou a que a ausência de vegetação sobre as dunas, e outros fatores não menos relevantes, ocasionassem o sepultamento gradual do porto.

Paralelamente a tudo isto, a desativação paulatina do Ramal ferroviário Sobral-Camocim, incluindo a desestruturação de todo o sistema de apoio em oficinas e manutenção, ampliou a força dos interesses que buscavam a extinção dessas atividades, as quais, harmonicamente, complementavam-se.

Hoje, o porto de Camocim é, apenas, uma lembrança, diante de inúmeras indagações que jamais serão respondidas. Mas, o Aratanha, que em sua época gloriosa emprestou seu nome ao principal bar da Praça da Estação de Camocim, continua vivo na memória dos camocinenses que tiveram o privilégio de alcançar a sua majestosa presença na calma do berço daquele estuário.

Texto extraído do livro "Outros Tempos", de José Maria Trévia.
A obra, que pode ser adquirida por apenas R$ 20 reais, está à venda na Associação Amigos das Artes de Camocim (AMARTES), cuja sede está localizada ao lado do prédio da Estação Ferroviária. Mais informações: (88) 9 9633-6526