domingo, 19 de dezembro de 2021

"O SINAL DA LUZ", POR JOSÉ MARIA TRÉVIA

Em Camocim, no início da década de 60, havia o costume de grupos de amigos se demorarem, até as dez ou onze horas da noite, em torno dos bancos da Praça Pinto Martins.

Quando a época era de férias escolares ou acontecia um fim-de-semana mais convidativo, as reuniões varavam a madrugada. Enquanto alguns se acomodavam sentados, aos outros pouco importava permanecerem de pé, pois era incrível como nos deleitávamos durante aqueles ajuntamentos, em que a informalidade impedia a abordagem de assuntos mais sérios e a palavra sempre estava facultada para a irreverência.

Assuntos polêmicos de economia e política jamais entravam na pauta e a liberdade de expressão dispunha de mais espaço, quando o assunto convergia para as gozações que, invariavelmente, culminavam em gostosas gargalhadas.

Às vezes, a vítima da pilhéria era parte do grupo e ali se fazia presente, submetendo-se, embora sob protestos, a servir de alvo para diversão da canalhada.

De vez em quando apareciam, nessas rodas, alguns andarilhos da noite, personagens como o Ferrolho e o Chico-Doido, os quais terminavam, também, como vítimas de chacotas e gozações, por conta de seus apelidos, ou por suas formas de pensar ou de agir: o Ferrolho, com a sua mania de autoridade e de comando, exigindo, do agente da Viação Macaboqueira, que a partida do ônibus só deveria acontecer, após sua autorização, confirmada por um apito; o Chico-Doido, com suas conversas sem sentido, adorava quem lhe ofertava um cigarro ou uma peça de farda militar, mas não admitia o apelido de Doido. 

Exibia, com indisfarçável orgulho, a “carteira de identidade”, confeccionada por um marinheiro do navio Rio Piancó, que atestava sua patente de Tenente da Cavalaria Marítima, cujo local, destinado à fotografia, estampava o rosto do índio, recortado de uma embalagem do cigarro Eldorado.

Se a noite se projetava para a madrugada, às três e meia da manhã, a banca do Olho-de-Bila já estava de fogo e lamparina acesos, e o cheiro da tapioca e do café invadira os ares do espaço entre o Mercadinho e o Mercado Público. Havia o aconchego de um tamborete rústico e do bate-papo popular, contanto não ousassem chamar o nosso anfitrião pelo odioso apelido de Olho-de-Bombom.

Muitos camocinenses ainda guardam, na memória, a figura assombrosa do Bronze, um louco inofensivo, que perambulava pelas ruas durante as madrugadas, envolto por um lençol, cabelos longos e carapinhados, com a forma de um cupinzeiro, e que, na sua loucura serena, provavelmente sorriu, muitas vezes, ante o susto e a humilhante carreira de alguns medrosos, impulsionados pela súbita descarga de adrenalina.

Foi, aquele, um tempo de sonhos, sem as ameaças e os perigos, trazidos pela evolução de outros tempos, quando Camocim dormia em paz e, com mais tranqüilidade ainda, mantinha-se desperta, ocupando a solidão de suas madrugadas. 
A energia elétrica, de sua iluminação, era gerada por dois motores, instalados no velho prédio da antiga Companhia Luz e Força de Camocim. O fornecimento, entretanto, era limitado ao intervalo do início da noite até as vinte e três horas. E essa limitação introduziu, no dia-a-dia dos camocinenses, aquilo que se convencionou chamar de “sinal da luz”, o qual se restringia a um breve apagamento e retornando logo em seguida. Esse corte momentâneo de energia era o aviso de que os motores seriam desligados, após alguns minutos, e funcionava como advertência, para que as lamparinas e lampiões a querosene fossem preparados por aqueles que, em casa, iriam permanecer acordados.

No caso dos rueiros noturnos, dentre esses, alguns jovens estudantes, que faziam parte de meu convívio, muitas vezes optavam por prolongar o tempo de permanência na praça, atraídos pela diversão dos assuntos correntes na roda da malandragem. Entretanto, havia aqueles que até disfarçavam suas intenções e se despediam minutos antes do sinal da luz, a fim de espreitar e assustar os mais supersticiosos, esgueirando-se pelas esquinas ou armando tocaias, nas sombras projetadas sob as copas frondosas das mongubeiras, dispersas pela Praça da Matriz.

Agora, o Zé Mota já deu o sinal da luz. O relógio da matriz ameaça registrar onze horas da noite, enquanto o Chico-Guarda apita na gare da estação ferroviária e se prepara para puxar a corda do sino por onze vezes. A Maria-Fumaça dormita à frente dos vagões, com sua caldeira levemente aquecida, aguardando o foguista que, em poucas horas, virá refazer-lhe as forças; quase ao mesmo tempo em que o Dez, o carreteiro mais solicitado, inevitavelmente estará chegando com as malas de algum viajante e, com sua chapa de metal reluzente no chapéu, ostentando o número que ofuscou o seu nome e sobrepujou a sua verdadeira identidade.

Alguém passa diante da igreja e faz o sinal da cruz. Os motores são desligados e a escuridão cobre o mundo de silêncio. Todos foram para casa, o Ferrolho, o Chico Doido, o Bronze, os meus amigos... Não escuto mais os apitos do Ferrolho, nem do Chico-Guarda... Não ouço mais a algazarra dos que partilharam, comigo, a sua juventude, em torno dos bancos de nossa praça. Há o vazio de uma profunda solidão... Provavelmente, já faz muito tempo que o Zé Mota deu o sinal da luz.

Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado", de José Maria Trévia. 

A obra, que pode ser adquirida por apenas R$ 20 reais, está à venda na Associação Amigos das Artes de Camocim (AMARTES), cuja sede está localizada ao lado do prédio da Estação Ferroviária. Mais informações: (88) 9 9633-6526 (whatsapp)