domingo, 12 de junho de 2022

POR TRÁS DOS SEUS OLHOS

Por Avelar Santos*

Quando o manto escuro da noite vestia a cidade, ouvia-se, ao longe, o repicar solene do sino da Matriz, na hora do Angelus, cuja vibração parecia espargir bênçãos, advindas do céu, que se derramavam, intactas, nos lares, trazendo, consigo, o bálsamo da paz aos corações cansados dos homens.

Sob o olhar atento da velha estação ferroviária, que traz, na memória, as marcas de tantas chegadas, e partidas, depois de um dedo de prosa com o mar, colhendo pérolas de aprendizado, o menino sabia que devia ir depressa para casa.

Logo, na entrada, o delicioso cheiro de sopa que saltitava, alegre, no fogão a lenha, atiçava, nele, o lobo voraz que trazia a fome estampada na face, indo, antes, lavar-se, para juntar-se aos irmãos à mesa.

Um pouco mais tarde, deitado, na rede, escutava, sonolento, uma voz melodiosa embalando os meus sonhos de criança com cantigas de ninar perfumadas de amor.

Sob a luz de seus olhos, refulgindo mil sóis, comecei cedo a trilhar, com as asas ligeiras do pensamento, a imensidão do cosmos, desbravando mundos perdidos, naquelas noites cheias de rara beleza.

Por trás dos seus olhos, na quietude dos dias, vi a radiosa flor da bondade desabrochar, exalando a magnificência do Criador, na singela partilha do pão, aos mais pobres, instigando-nos a fazer o bem.

Nesses momentos sublimes, mesmo no silêncio, revelando a humildade de seu coração grandioso, D. Margarida, minha amada mãe, nos falava dos bons samaritanos.

E o brilho do seu sorriso acalmava a angústia daqueles vergastados pelos temporais da vida, cujas frágeis jangadas, boiando, pobrezinhas, à mercê das correntes do destino, suplicavam, aos gritos, aos céus, no fragor da procela, por piedade.

Sob a claridade do farol que guiava os seus passos, aprendi a enxergar o mundo, escudado nos ensinamentos do Divino Mestre, que ela, com seus gestos de pleno acolhimento, nos ensinava com extrema paciência.

E a largueza de seu altruísmo permitia que ouvisse às pessoas que a procuravam, buscando aconselhamento, confortando-as com palavras eivadas de sabedoria.

E isto era algo fascinante!

Depois de sua viagem derradeira, a bordo do trem estelar, a saudade está presente nas lembranças distantes que navegam em mim.

Ao rever meu antigo lar, hoje, deserto, a moldura do tempo é estilhaçada, e eu a vejo, de novo, à porta, aguardando, ansiosa, a chegada dos filhos, como fazia com tanto desvelo outrora.

Por mais que eu tente, nessas horas, jamais refreio a emoção que sempre deságua num riacho de lágrimas.

*Professor e Escritor