quinta-feira, 29 de setembro de 2022

A POESIA DA CIDADE

Por Avelar Santos*

Existe um lugar mágico, onde reina a paz, sublimada, nas noites de poesia, quando a lua cheia, vestindo-se, com esmero de debutante, por detrás da Ilha do Amor, assoma, radiante, o horizonte, beijando o mar, com ardor apaixonado, afagando, também, com seu facho de luz, as velas, que boiam, singelas, nas águas tingidas de prata, cujo encanto revela a grandeza do Criador, enternecendo, por momentos eternos, nossos corações.

Essa terra de beleza sem fim, outrora joia preciosa dos valentes tremembés, que nos permite sonhar como crianças, ao palmilharmos o seu chão, desbravando os seus segredos, para mim é tão doce dizer o seu nome: CAMOCIM.

Das glórias do passado, que remontam à vida da urbe provinciana, cujos traços característicos perpassam pelos apitos do trem, e dos navios, que enchiam os ares de alegria, naqueles inesquecíveis tempos idos da mocidade, cujos ecos ainda reverberam forte em minha mente.

De traçado único, de tablado de xadrez, que se encaixa como uma luva aos olhos daqueles que amam o belo, a cidade, que, antes, cabia, inteira, na palma de minha mão, cujo marco terminava, ali, nas "Quatro Esquinas", repentinamente começou a distender suas potentes asas, ganhando novas cores, novos espaços, sinalizando, nessa complexa metamorfose, que, muito em breve, voará por outros céus.

Até quando Deus me permitir, estarei atento às mudanças, que certamente virão a galope, mas, com o olhar voltado para o passado, fisgando, com o anzol do pensamento, perdidas recordações, que reacendem, cada vez mais, o brilho da chama do amor juvenil que sempre nos unirá.

Todo finzinho de tarde um velho percorre, de bicicleta, a amada Engenheiro Privat, passando, devagar, ao largo da antiga estação ferroviária, na esperança de ver um menino, sentado no batente de casa, esperando, pacientemente, o seu pai chegar, nos calorosos braços da elegante Maria Fumaça.

E ele fica tão feliz ao vê-los, finalmente, conversando, animados, rumando, para o lar, sendo recebidos, à porta, por minha mãe.

Depois, revejo, com lágrimas sulcando o meu rosto cansado, outros irmãos se aproximarem para receber papai, cada um querendo dizer-lhe as boas novas da escola.

Nesse instante, o sino da Matriz anuncia, solene, a hora do Ângelus, enquanto a família agradece ao Senhor tantas bênçãos.

De volta ao presente, após reviver esta lembrança, afasto-me, dali, sem me despedir deles como eu gostaria tanto de poder fazê-lo.

Observando a gare, agora deserta, dou uma última olhada em derredor, vendo, surpreso, o guri, postado na janela da sala, ao lado dos pais, acenar para mim como a dizer-me que amanhã é outro dia.

Com a doçura de seu canto, a ave de arribação noturna chega, de mansinho, trazendo, consigo, as lamparinas celestes, aquietando as aflições, aliviando, aos poucos, todas as preocupações.

Por fim, mergulhado nessa saudade, que me deixa insone, por vezes, aquilatando bem os pesos, não sei ao certo quem mudou mais, se fui eu ou a cidade.

*Professor e Escritor

Foto: Robervaldo Monteiro 
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