terça-feira, 4 de outubro de 2022

POR QUE OS CASOS DE CRIANÇAS COM AUTISMO ESTÃO AUMENTANDO? HÁ UMA "EPIDEMIA" DE AUTISMO?

Por Chagas Rocha (Licenciado em Ciências Biológicas pela UFDPar, autista e membro do grupo Pais Atípicos Camocim) 

Muitas pessoas se questionam o motivo de tantas crianças estarem sendo diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nos últimos anos. Será que a taxa de autismo está crescendo na população, ou pessoas que antes não tinham acesso a profissionais especialistas estão tendo mais acesso hoje em dia e podendo reconhecer sua condição ou a de seus filhos? Será que a ciência corrobora a ideia de que há uma “epidemia” de autismo?

Para obtermos respostas, devemos evitar achismos e buscar estudos com boas metodologias. Há vários estudos com metodologias distintas. Um dos estudos mais citados por especialistas (por ter uma metodologia mais confiável) é o do CDC (Centers for Disease Control and Prevention). O dado mais recente, publicado em dezembro de 2021, indica uma taxa de 1 a cada 44 crianças com 8 anos de idade são portadoras do TEA.

Pesquisas realizadas anteriormente pelo mesmo grupo haviam relatado que 1 a cada 68 crianças estavam no espectro, em outro estudo posterior a este a taxa foi de 1 a cada 59. Outro realizado em 2020 demonstrou que 1 a cada 54 crianças estavam no espectro autista. Comparando tais pesquisas com a mais recente (1 a cada 44) corrobora-se a ideia de que há um aumento de crianças diagnosticadas (não necessariamente um aumento no nascimento de crianças com autismo).

Mas afinal, há um aumento significativo no nascimento de crianças com a condição? O que grande parte dos pesquisadores concordam é que pode sim haver um aumento no nascimento de crianças com TEA, mas esse aumento não é tão significativo quanto muitos pensam. O que existe de fato é um aumento no acesso ao diagnóstico.

Uma informação que ajuda a compreender essa questão é a de que o autismo é genético. Em uma pesquisa realizada pelo JAMA Psychiatry, em 5 países com uma ampla taxa de amostragem envolvendo milhões de pessoas, demonstrou que em 81% dos casos, o autismo pode ser herdado da mãe ou do pai, ou da soma do material genético de ambos (não significa que todo pai ou mãe de autista também seja). Este dado é o suficiente para descartar a ideia de “epidemia”. Se há um aumento na taxa de nascimento, ele está em 18% dos casos que são genéticos não-herdados, ou seja, não está no pai, nem na mãe, a mutação genética surge na criança. Na mesma pesquisa, demonstraram que apenas 1 a 3% dos casos são por fatores ambientais que afetam o feto no útero da mãe.

A mesma revista científica JAMA Psychiatry divulgou um estudo em julho deste ano, utilizando uma metodologia distinta daquela utilizada no estudo do CDC, no qual apontou que 1 a cada 30 crianças, com faixa etária entre 3 e 17 anos, está no espectro autista. Vale ressaltar que esta pesquisa da revista JAMA não pode ser comparada com o último dado obtido pelo CDC (1 a cada 44), já que ambas possuem metodologias distintas.

Então, o que explica esse aumento dos diagnósticos?

No estudo realizado pelo CDC, os estudiosos apontam que o aumento dos diagnósticos de autismo nos últimos anos está relacionado a alguns fatores:

- Crianças sendo diagnosticadas mais cedo por conta de um maior acesso ao diagnóstico;
- O aumento do número de médicos habilitados para o diagnóstico do TEA;

- Consciência maior da sociedade de forma geral (médicos, parentes, e professores) sobre o autismo.

O estudo também demonstra que crianças negras (nos EUA) estão tendo mais acesso aos serviços de diagnóstico, e a taxa entre negros e brancos estão com percentual similar. Em estudos anteriores, por conta da desigualdade social, a taxa de crianças negras diagnosticados era menor. O estudo mais recente realizado pelo CDC, apontou ainda que, nos EUA, há uma menor taxa de diagnósticos quando se trata de crianças latinas, não porque há menos crianças autistas entre os latinos, mas porque estes têm dificuldade no acesso ao diagnóstico.

Vale citar também a mudança que houve no entendimento do que é autismo nos últimos anos com a atualização dos manuais usados pelos médicos, o DSM-5 e o CID 11. Até 2013 o DSM-4 era o documento vigente, o documento citava um grupo chamado Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD) no qual incluíam várias condições: Autismo (nessa época não se denominava TEA), Síndrome de Asperger, Síndrome de Rett, Transtorno Desintegrativo da Infância (TDI), e TGD sem outra especificação.

Em junho de 2013 entra em vigor a atualização do DSM-4, o DSM-5, no qual aboliram o termo Transtorno Global do Desenvolvimento, separaram a Síndrome de Rett, e reuniram os outros quatro termos (Autismo, Asperger, TDI e TGD sem outra especificação) em um diagnóstico chamado Transtorno do Espectro Autista. Tal mudança impactou no número de diagnósticos, já que hoje há critérios diagnósticos mais claros e organizados.

Infelizmente, há poucos estudos sendo realizados no Brasil nesse sentido. Mas a opinião unânime entre os médicos especialistas e estudiosos é a de que no nosso país o autismo é subdiagnosticado (principalmente quando se trata do sexo feminino), ou seja, há muitas crianças, adolescentes e adultos autistas por aí sem diagnóstico. Não é uma tarefa nada fácil obter um diagnóstico de TEA no Brasil, principalmente quando se trata de adultos, e as principais barreiras são a financeira e a falta de profissionais capacitados.

Vale destacar a importância de profissionais capacitados no processo de diagnóstico. Não há exame que possa identificar o autismo, o diagnóstico é clínico, e o que mais conta é a experiência do profissional ou profissionais envolvidos. Dependendo do caso, é necessário a atuação de uma equipe multidisciplinar.

O capacitismo, atitude que discrimina ou denota preconceito, é algo que autistas e pais atípicos estão sujeitos a enfrentar no dia-a-dia. Comentários absurdos como “não tem cara de autista” (sic), ou que “não pode ser autista, pois autista não fala”, ou que “isso não é autismo, isso é falta de uma boa criação” ainda são comuns. Dói ler esse tipo de relato? Agora imagine passar por isso!

Quando finalmente alguns pais conseguem um laudo e precisam recorrer ao benefício BPC (LOAS), podem se deparar com um médico perito que, diante de uma criança com autismo nível 1 ou 2 de suporte, diz “este não é autista”, ou que “não é autista o suficiente”. Este relato é muito comum. Vale ressaltar que a lei não faz distinção entre os níveis de suporte.

O censo do IBGE que está sendo realizado este ano irá atualizar os dados sobre o autismo no país, porém, partindo da premissa de que o TEA é subdiagnosticado no país, o censo está longe de ser o instrumento ideal para auxiliar nessa questão.

Não é nada fácil ser autista no Brasil, e isto se dá pela falta de acessibilidade, o capacitismo e a carência de políticas públicas. É por isso que grupos de apoio a autistas e pais de autistas são importantes. Em Camocim há o “Pais Atípicos Camocim”, um grupo de pais de autistas e autistas adultos com um interesse em comum: tornar a sociedade menos capacitista, difundir informações sobre o autismo e lutar por políticas públicas na nossa cidade. Você pode seguir a conta no instagram pesquisando por @paisatipicoscamocim.

Agradeço ao blog Camocim Online pela oportunidade de esclarecer questões importantes a respeito do autismo.

Referências:

AUTISM PREVALENCE RISES IN COMMUNITIES MONITORED BY CDC. 26 mar. 2020. cdc.gov. Disponível em: https://www.cdc.gov/media/releases/2020/p0326-autism-prevalence-rises.html. Acesso em: 30 set. 2022.

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