sábado, 18 de março de 2023

A PRAÇA DA ESTAÇÃO

Por José Maria Trévia 
(Escritor Camocinense)

Às vezes, quando nos surpreendemos com pensamentos voltados para lugares que fizeram parte de nosso passado e, consequentemente, nos trazem recordações de momentos ali vividos, não raramente uma praça é o cenário principal desses acontecimentos, que marcaram a nossa existência. 

Acreditamos que isto se deva ao fato de ser esse tipo de logradouro que, em tempos outros, reunia as mais variadas e propícias condições para o encontro de pessoas que buscavam um lazer extremamente simples. 

Todavia, esta diversão, supostamente simplória, muitas vezes se tornava o início de grandes amizades ou, pelos menos, ocasiões especiais que marcaram, para sempre, o rosário de nossas ingênuas lembranças. A praça vai muito além de um espaço visto como pulmão, pois ela também inspira amor e alimenta paixões, nos olhares que se cruzam e nos encontros que, por supostas “coincidências”, frequentemente, voltam a se repetir. 

Em Camocim, dentre as praças públicas ali existentes, uma delas se destaca quando rebuscamos, nos arquivos da memória, as fases que fizeram a sua história e as particularidades que a tornaram, de certa forma, especial.

A Praça da Estação, como é mais conhecida, já foi Praça 15 de Novembro e atualmente o seu registro oficial é Praça Vicente Aguiar, numa homenagem ao genitor do líder político Murilo Rocha Aguiar. As calçadas do passeio, as quais contornavam todo o seu espaço e que, por costume interiorano, nós chamávamos de “avenida”, formavam um triângulo entrecortado por outros ramais, que ligavam os seus lados entre si. 

A nossa avenida, que recebera arborização e bancos de cimento liso, para o deleito dos frequentadores, possuía, ainda, dez postes de cimento, com pouco mais de dois metros de altura, encimados por um globo de iluminação. Esta maravilha de nossa época foi inaugurada, em 1954, durante o último ano do primeiro mandato do senhor Setembrino Veras, à frente do Executivo Municipal.

Esta praça, a quem inúmeras vezes foram feitas referências como “A Praça da Vitória”, mormente por ocasião dos empolgantes comícios de campanhas políticas do PSD, foi durante muitos anos o reduto sagrado dos “Cara Preta”. Ali, quase sempre era realizada a concentração final da campanha, justificadamente, pela presença dos estúdios do Serviço de Alto-Falantes "A Voz de Camocim" e do predomínio absoluto de seus partidários, naquele trecho da cidade. Todavia, há outros fatos e características que tornavam a Praça da Estação um atrativo especial para os camocinenses, de todas as faixas etárias e dos diversos níveis sociais que a nossa sociologia provinciana pudesse elencar. 

Em torno da mesma, além da Irradiadora A Voz de Camocim, que por si já atraía boa parte dos seus frequentadores, concentravam-se, diversas casas residenciais, o Hotel do Holanda, o Aratanha Bar e a Bodega do “seu” Brizamor, onde, posteriormente, estabeleceram-se, respectivamente, o Escritório da Martinelli, o Avenida Bar, do Dedinho Trévia, e o Bar Ranchinho, do Antonio Trévia. O porto ficava logo ali, a cem metros, sempre recebendo os navios da Costeira, com suas cargas e seus tripulantes, fazendo girar a roda financeira do nosso município. 

E, como se não bastasse, ali estava, imponente e bela, a Estação Ferroviária, recebendo sob as asas acolhedoras do seu enorme galpão, a memorável Maria-Fumaça e sua composição. Sua chegada era uma festa de recepção, um festival de bagagens de todos os tipos, uma avalanche de carreteiros apressados pela barganha de alguns mil réis.

Era, assim, a nossa praça. Entre as calçadas da avenida, a grama verde que não podíamos pisar.

- Menino, sai daí, não pode pisar na grama! Parece-me ainda ouvir este brado do Capacidade, o velho empregado da Prefeitura, de cabelos brancos e rosto rosado, que cuidava da praça. Corríamos, atravessando o gramado, desrespeitando a ordem e rindo das ameaças inofensivas do velho cuidador, que apressava o passo e se tornava mais corado que o de costume, segurando nas abas largas do seu chapéu de palha.

- Eu vou dizer pra seu pai, dizia ele quando já estávamos longe, escondidos atrás do carro de pipoca do “seu” Milton. As ameaças do Capacidade não causavam medo, até porque, o filho do Prefeito estava sempre conosco, participando das costumeiras traquinagens.

No meio do tapete de grama, do lado mais estreito da avenida, havia um canteiro repleto de Espadas de São Jorge, de onde retirávamos nossas “espadas” antes de travarmos nossas lutas entre piratas e corsários, índios e cavalaria, ou outros combates mais ousados, que a nossa infantil imaginação alcançasse ou as sessões do Cine João Véras nos inspirassem.

No início do ano de 1956, foi projetada mais uma calçada, atravessando o centro do passeio, no meio da qual se construiu um quadrado, para servir de coreto, ladeado por dois postes de iluminação, iguais aos que já existiam na praça. A partir de então, aos domingos, no horário das 19 às 20 horas, a Banda de Música executava os seus ensaiados hinos, marchas e dobrados, enquanto "A Voz de Camocim" silenciava neste intervalo de tempo, para que pudéssemos ouvir a banda tocar. Foi um período relativamente curto em que tivemos de volta as nossas retretas, de saudosa memória.

Às vezes, dávamos trégua às brincadeiras para apreciar os componentes da banda e seus trejeitos, destacando-se o Truaca no piston, exibindo o seu quepe empenado sobre a cabeça e as bochechas infladas pelo ar comprimido na boca; o “seu” Tasso, totalmente entregue ao abraço da enorme tuba; o Manoel Aristides, com sua serenidade a executar o seu trombone; o Antonio Basílio, com o seu bombardino que, anos depois, seria trocado por um saxofone; o Cabeça, um eterno brincalhão, marcando a cadência com o pesado bombo; o Manezim, com o seu clarinete choroso; e, ainda, o Batista no tarol; e o Benedito, exibindo-se com os pratos estridentes, presos aos dedos pelas tiras de couro. Os músicos se acomodavam nos bancos de madeira, pintados de verde, os quais, durante a semana permaneciam guardados nos estúdios do S.A.F. A Voz de Camocim.

Por vezes, a concentração dos músicos era levemente afetada pela “participação” do Acarape, um maluco, que imaginava fazer parte da banda e estava sempre buscando assediá-la, durante suas apresentações. Além disso, durante o deslocamento formal da mesma, o Acarape marcava a cadência e marchava garbosamente, exibindo-se com orgulho e gesticulando, como se tocasse um instrumento, que imaginava ter sob o domínio do compasso de seus dedos.

A nossa praça, de tantas vozes e tantos feitos, serviu de palco, também, para os calorosos desfiles comemorativos de nossas datas cívicas e dos nossos antigos desfiles de carnaval. Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, num dia qualquer do ano de 1954, encantou-nos, ali, com sua voz e sua sanfona, no mesmo local onde, no ano seguinte, seria armado o palanque para Juscelino Kubitschek dirigir seu discurso ao povo camocinense, em sua vitoriosa campanha à Presidência da República.

A Praça da Estação ainda existe, mas ela é, hoje, uma praça triste. Não há nela nenhuma criança para alegrar seu início de noite ou qualquer grupo de jovens ou casais de namorados, que lhe inspirem o romantismo de outras épocas; não há festas de chegadas, desde que o trem partiu e não voltou. 

Todos já se foram, inclusive os seus hotéis, os seus bares e as famílias de tantos lares, que adormeciam no aconchego de seu entorno. Sem os seus fregueses, o pipoqueiro foi embora, quando dali, também, afastou-se, para sempre, o vendedor de “quebra-queixo”, com o seu fraseado “quem quiser pida, porque peça é de automóvel”, enquanto insistia no repetido movimento, necessário ao corte do duríssimo doce-de-coco, sob os olhares da criançada impaciente, aguardando atendimento.

Perdemos, ainda, a doce sonoridade da praça, que nos deleitava com as saudosas músicas dos sucessos de então, visto que "A Voz de Camocim", há muitos anos, silenciou. E o "Capacidade", o bondoso velho da praça, assistiu à perda gradual e inclemente do significado de sua função.

Haverá o dia em que, pela força maior da razão ou pelos impulsos inexplicáveis do coração, aquele logradouro ainda há de receber o idílico nome de Praça da Saudade.

Texto extraído do livro "Outros Tempos", de José Maria Trévia