sábado, 8 de abril de 2023

A ESCOLA DA DONA MIMI

Por José Maria Trévia 
(Escritor Camocinense)

Vivíamos o ano de 1956. No ano anterior, meu pai me havia retirado, juntamente com meu irmão Carlos Augusto, do Instituto Batista Pinto Martins, em Camocim, para nos matricular na Escola da Dona Mimi. 

O motivo da decisão foi que, não obstante as diversas virtudes daquele que chamávamos Colégio Batista, estávamos defasados em relação à aritmética. Ainda, segundo ele, na Escola da velha mestra as condições de avançar mais numa matéria específica, estaria mais próximo de seu alcance. E, assim, fora feito.

Meu pai mandou fazer, na carpintaria do Meruoca, os dois banquinhos de madeira – o nosso popular tamborete – a fim de que fossem levados para a escola, logo no primeiro dia de aula, e lá permaneceriam para o nosso uso. É que, na Escola de Dona Mimi, cada aluno teria que levar o seu banquinho, daquele tipo bem simples, que não tinha a bancada de apoio para escrever, deixando-nos como única alternativa a escrita com o caderno no colo. 

As chamadas Escolas Particulares tinham como características predominantes a ausência de farda, funcionavam em sala da própria casa da Professora, não havia férias em julho e o custo menor, além de ter alunos de diferentes níveis e idades, juntos no mesmo ambiente. 

Não havia uma aula direcionada para a turma toda, os ensinamentos eram direcionados a um aluno de cada vez. Estudávamos história, caligrafia e aritmética, incluindo as quatro operações de contas enormes, que mal cabiam na folha do caderno, e a rígida cobrança da tabuada, na ponta da língua. A sabatina, no sábado como o nome sugere, a palmatória castigava e aconselhava a estudar mais na semana seguinte.

Logo nos primeiros dias já estávamos adaptados ao regime e entrosados com os novos colegas, principalmente por já conhecermos a maioria deles. Guardo nítidas lembranças de diversos deles, destacando Maria Cleide Sousa; o Deusdete, neto do Sr. Manoel Artur, e com quem ele morava; a Francisca Bastos, o Afrânio Queiroz, o Antonio, que trabalhava com o Sr. Fernando Cela, na Cooperativa, o Francisco Morel e, evidentemente, o Carlos Augusto, meu irmão.

O Afrânio Queiroz era pequeno e comunicativo. Lembro de uma representação que ele fazia, sempre que Dona Mimi, que lhe tinha uma afeição pessoal, solicitava. Para representar, ele levanta-se do banquinho, tomava posição de um soldado, fazia continência e bradava:

– “Sou eu, o Doutor Pimpo Aragão, demagogo de Quiriconga”!

Eu nunca soube o que realmente significava aquilo. Se era perguntado, o Afrânio respondia que era seu pai que lhe havia ensinado.

Tínhamos mais aproximação com o Deusdete, pela idade e pela preferência por caminhões feitos artesanalmente, de madeira, embora compartilhássemos de inúmeros outros tipos de brincadeiras. E, por conta dessa amizade, o trio terminava aprontando algo inaceitável diante dos padrões exigidos, como o acontecido na sala de aula, na tarde daquele dia. E, Dona Mimi premiou com zero no comportamento, para cada um dos três patetas. E nos mandou para casa, afirmando que iria ao armazém do papai, para falar com ele.

No início da noite daquele mesmo dia, eu e o Carlos Augusto estávamos brincando na praça, quando nos reencontramos com o Deusdete, reunindo novamente o “trio do zero”. 

E, talvez achando que a enrascada em que nos havíamos metido era “café pequeno”, continuamos a brincar como se nada tivesse acontecido durante a tarde. No decorrer das conversas, um gênio teve a “maravilhosa” ideia de comprarmos cigarros e fumar lá para os lados da Avenida Velha, onde havia pouco movimento e era mais difícil ser visto. 

Não deveríamos comprar os tais cigarros no Aratanha Bar, situado no coração da nossa festejada praça, haja vista a possibilidade de termos problemas logo na aquisição dos mesmos. Somente o Deusdete tinha dinheiro e aceitou financiar o pecado. Unânime foi também a decisão de nos afastarmos dali, em busca da Bodega do Nen Cabeça Branca, distando mais de duzentos metros da praça. Tudo muito bem “pensado”, tendo, evidentemente, tudo para dar certo.

A Bodega do Nen Cabeça Branca era, na verdade, uma mistura de bar e bodega, uma construção isolada de outras, bem próxima à beira do cais e frequentada, principalmente, pelos canoeiros e seus passageiros, que faziam a travessia para o Outro Lado, como é conhecido o lado oposto do estuário. 

Por conseguinte, não obstante tratar-se de um pequeno comércio, ali se encontrava os principais gêneros alimentícios, produtos de limpeza, bebidas, cigarros e uma infinidade de outros em pequenas quantidades. Contudo, sobrava espaço para guardar utensílios de pesca, urus, samburás, lemes, fateixas, remos e até mastros e velas, quase todos de propriedade de seus amigos canoeiros.

– “Seu” Nen, eu quero três cigarros Lincoln e uma caixa de fósforos, disse o Deusdete, colocando o dinheiro em cima do balcão.

Desdobrando o dinheiro, “seu” Nen correu a vista nos três, mas não fez nenhum comentário. Entregou o produto da compra e o troco, ao Deusdete, sem falar nada. Eu e meu irmão entramos calados e, do mesmo jeito, saímos. O “seu” Nen deve ter guardado os comentários a serem feitos, com os dois canoeiros ali sentados, depois que fôssemos embora. Com certeza, algum pensamento lhe veio à mente: “Três meninos desconfiados, comprando três cigarros e uma caixa de fósforos... Aí tem coisa.”

Não tínhamos relógio, mas imagino que passava um pouco das sete horas da noite. Retornamos pelo cais, em busca da Avenida Velha, sem iluminação e pouco movimento. Invadimos o coreto e sentamo-nos no assento de cimento que circulava internamente a sua balaustrada e isentando, apenas, pouco mais de um metro para a abertura de acesso dos poucos frequentadores. Em um curto espaço de tempo, já se via a fumaceira cobrindo o coreto da saudosa Avenida Velha.

Desconhecíamos que os olhos da noite não adormecem, eis que passa um pequeno grupo de pessoas, indo em direção à Praça da Estação, ali, já bem pertinho. Fazendo parte daquele grupo estava o José Carlos Boris, que, ao nos reconhecer, imediatamente deu um aviso:

– Zé Maria, vou dizer para o seu pai que você está fumando! E, você também, Carlos Augusto. Por algum motivo, o Deusdete foi poupado. Talvez as presas mais visadas fossem eu e meu irmão, por sermos mais conhecidos pelo José Carlos e nossas famílias terem ligações de amizade. Ademais, ele sabia que o papai estava ali perto, na Praça da Estação, onde, vez por outra, ficava conversando com alguns amigos.

A ameaça aterrorizou-nos e a brincadeira extravagante se acabou, sendo tratada como coisa séria, a partir de então.

Para não passarmos pela praça da Estação, fizemos a volta no quarteirão. No percurso estava a calçada de Dona Mimi, lembrando-nos do zero no comportamento. Como se não bastasse, Dona Mimi nos avisara que iria lá no armazém do papai, falar com ele. 

Durante a caminhada para casa, conversamos sobre o duplo problema que havíamos arrumado: O zero, cravado na cadernetinha de notas pela Dona Mimi e, agora, a história do cigarro, comprado no conhecido Bardega do “seu” Nen Cabeça Branca.

Lá em casa havia um rodízio, entre eu e o Carlos Augusto, disciplinando quem iria pegar, no armazém do papai, a cesta do mercado, pela manhã. Um dia era eu, no dia seguinte era ele e, assim, sucessivamente. 

O encarregado do dia levantava-se um pouquinho mais cedo, enquanto o outro poderia dormir um pouco mais. Talvez por ser eu o mais pecador, o dia seguinte recaíra para mim. Isto signifcava que seria eu, o primeiro a posicionar-se frente a frente com o papai, lá no armazém.

Eu e Carlos Augusto dormíamos no mesmo quarto, sempre no mesmo horário, e sempre havia algo para conversar. Não seria naquela noite que iria faltar.

– É tu quem vai buscar a cesta amanhã, disse o Carlos Augusto, sem arrodeios.

Eu fiquei calado, pensando durante alguns momentos. Resolvi, então, arriscar:

– Vamos fazer um negócio, você vai amanhã e, depois, eu vou dois dias seguidos.

– De jeito nenhum. Amanhã o dia é seu, respondeu ele, fechando todos os canais de negociação.

Não insisti com novas propostas, pois eu conhecia meu irmão. Nenhuma vantagem, por maior que fosse, faria com que ele aceitasse a permuta. Mas, como Deus é bom, eu não tive insônia.

Levantei-me no horário, enquanto o Carlos Augusto, já acordado, permaneceu deitado, mas em silêncio.

Em poucos minutos eu estava, de cesta na mão, a caminho do armazém.

Adentrei o armazém e fui logo entregando a cesta ao papai, sem falar. O seu olhar para mim já dizia tudo, mas ele quis confirmar o que eu havia percebido, na forma como retirou a cesta de minhas mãos, dizendo:

– Espere aqui.

E saiu, a passos largos em direção ao mercado, no centro da praça. Eu fiquei sozinho no armazém, mas isto era normal, quando ele fazia uma saída rápida para algum lugar nas proximidades.

Eu sabia que viria chumbo grosso, mas a minha ansiedade não era pela forma como viria, eu apenas queria que o tempo passasse.

Retornando do mercado, meu pai entregou-me a cesta e falou, com cara de poucos amigos:

– Vá pra casa tomar café e volte com o Carlos Augusto. Tragam seus livros e a palmatória.

As coisas começavam a clarear, mas ainda apresentavam uma estranha cor de cinza. Tomei a antiga e saudosa Rua Senador Jaguaribe, hoje Rua José Maria Veras, uma reta que ligava a Praça Pinto Martins, ou Praça do Mercado, à minha casa. 

Quando alcancei a calçada do Posto de Saúde, a 50 metros de nossa casa, aproximadamente, logo avistei o Carlos Augusto na calçada, apreensivo. E ele até deu alguns passos ao meu encontro, tão ansioso estava para saber o que estava acontecendo. O semblante dele já era uma interrogação, mas ele não se conteve e resolveu falar:

– Como é que foi? Interrogou preocupado.

– Nós vamos apanhar, sentenciei, lembrando a ordem do papai para levar a palmatória. E relatei aquilo que ele dissera, inclusive as recomendações sobre os livros e a palmatória.

Do que havíamos aprontado, minha mãe sabia, apenas, da história do cigarro na Avenida Velha. Mesmo assim, tínhamos negado para ela, afirmando que lá estivéramos, mas não estávamos fumando. Quanto ao papai, ele sequer perguntou-nos sobre a história do cigarro, e era fato que D. Mimi lá estivera, apenas, para falar sobre o nosso comportamento na sala de aula. Para ele, uma só das histórias já bastava, além de que, eu e meu irmão, jamais tivemos a certeza de que o José Carlos Boris nos delatou.

Após o café, que me parecia amargo, peguei a palmatória e o único livro pelo qual estudávamos naquele ano, o livro de História do Brasil, e nos encaminhamos para o armazém do papai. Além do livro, sem nenhuma cerimônia, pelo meio da rua eu carregava a palmatória, pendurada pelo cadarço que a mantinha, sempre, em um dos armadores de rede. No percurso até o armazém, quase não trocamos palavras. Não é preciso dizer a quantas chegava o nosso arrependimento.

– Vão lá para o salão de trás, estudar. Depois, eu vou lá, disse-nos o papai, logo que fomos adentrando o armazém.

– “Meus Deus, esse pesadelo não termina mais,” meditei caminhando. Passei, pelo extenso corredor, entre suas paredes de quase meio metro de largura, e onde ainda se via os resquícios dos dutos e dos “fios terra”, memórias de onde foi instalado, um dia, o Serviço de Altos Falantes precursor dos Sonoros Pinto Martins, de propriedade dos sócios Neném Lúcio e Chiquinho Vasconcelos. 

No final do corredor, abria-se o espaço do salão, onde já foi o bar do Taumaturgo, com sinuca e entrada pela Rua Senador Jaguaribe. Aquele imóvel, onde meu pai se estabelecera com o seu armazém, era muito grande, a ponto de ter áreas ociosas. Fora adquirido de D. Laíde Carneiro, herdeira de Belarmino Carneiro.

Agora, ali estávamos, naquele “mundo antigo”, onde gostávamos de brincar, mas aquele momento não estava para brincadeira. Sentei-me, chorando muito, num velho banco de tábuas corridas, empoeirado, que parecia, há muito, esquecido. E haja leitura da duvidosa História do Brasil, que se iniciava, assim:

– “Foi em 1500. Faz mais de quatrocentos anos. Havia em Portugal um Rei muito poderoso chamado D. Manoel”. Este trecho eu já sabia de cor e salteado, mas continuava lendo, até o final da lição. Eu lia em voz alta e os soluços ditavam o ritmo, interferindo na pontuação da leitura. O Carlos Augusto não chorava, guardava suas lágrimas “para quando o enterro saisse”, como dizia um velho ditado.

Momentos depois, o papai adentra a sala e faz o preâmbulo:

– Vocês estão precisando de disciplina. Quando sairem daqui, vão direto pra casa, estudar. E à tarde, façam alguma coisa errada na escola, estão ouvindo?

Com os olhos nadando, apenas assentíamos com um leve movimento de cabeça.

– Cadê a palmatória?

Olhei para o instrumento de madeira, ao meu lado, em cima do caderno, pegando-o e entregando ao papai, em silêncio.

– Vocês sabem por que vão apanhar?

Repetimos o assentimento, com um leve movimento de cabeça. O papai aplicou-nos quatro bolos com a palmatória, dois para cada mão. Foi esta a única vez que meu pai me castigou com palmatória.

Naquele mesmo dia, chegamos à escola bastante desconfiados. Dona Mimi nos recebeu tão bem que até nós ficamos surpresos. Talvez ele tenha lembrado que nós já tínhamos pago o tributo da desobediência.

Hoje, abraçando os meus setenta anos, eu lembro de meu pai e sei o quanto ele tinha razão. Não guardo nenhuma queixa, nem as mínimas, e sinto saudades dele.

Em um curto espaço de tempo, o episódio já havia sido esquecido ou, pelo menos, deixado para trás, até porque já teria perdido a sua importância. Além disso, nossas cabeças estavam programadas, pela própria ingenuidade, para dar preferência a tantas coisas boas que tínhamos para ver e viver.

Lembro-me de que chegara o mês de julho, de animadíssimas praias, mas na escola de D. Mimi, férias só em dezembro. Em dado momento, alguém à porta, anunciou:

– Olhem só, quem vem ali, é a Miss Brasil!

Foi uma festa geral. A alegria tomou o lugar da disciplina e da concentração dos pequenos estudantes, quando todos se levantaram e correram em direção à porta e, é claro, para a calçada, exceto Dona Mimi. Ela se pôs de pé à saída, sem descer do batente, e parecia feliz. Todos ali, com o único objetivo de contemplar a passagem, em trajes de saída de banho, dirigindo-se à praia, não menos que a prendada Emília Correia Lima, nossa Miss Brasil 1955. 

Ela encontrava-se hospedada na residência de seus anfitriões Senhor e Senhora Edmundo Moreira e Lúcia Parente, a poucos metros dali, o que transformara a rua de nossa escola em passarela da Miss Brasil, a caminho da praia. Camocim teve dias de glória, cortejando a beleza da encantadora Emília, que em tempos de juventude passara dias de suas férias estudantis, em Camocim.

Texto extraído do livro "Memórias de um Saudosista", de José Maria Trévia