domingo, 2 de abril de 2023

A POLÍTICA NA MINHA TERRA

Por José Maria Trévia 
(Escritor Camocinense)

O ano de 1958 foi ano de seca no Ceará. Além da sofrida ausência das precipitações pluviométricas, com todas as suas fatídicas consequências, fizeram-se presentes, também, as eleições para os cargos de prefeitos, vereadores, deputados e senadores, trazendo inspiração para o cordelista que acumulava as funções de artista e camelô, para divulgar sua cultura e vender sua arte, no mercado público de minha Camocim. Costumeiramente, são apenas camelôs, com conhecimentos e habilidades para vender os folhetos de cordel, ou seja, utilizando a sua arte de vender, vendendo a arte dos outros.

– “Desgraça nunca vem só / Sempre traz acompanhante / Além da seca inclemente / Vem a política infamante”, assim começara o cordelista, lendo em voz alta e rouca, com gestos entusiastas foi buscando suscitar a curiosidade da plateia, que se aglomerara em sua volta. E a cada lamento citado como sofrimento do sertanejo pobre, vem a censura aos “políticos desonestos / que enganam e roubam o povo, / descumprindo suas promessas / e enganando eles de novo”. E no momento em que o seu público se mantém estaticamente concentrado, quando a curiosidade dos assistentes atinge o seu clímax, o cordelista dá uma parada e faz o seu comercial, instigando ainda mais a expectativa do grupo que se fechara em círculo, à sua volta:

– “E, agora, vocês precisam ver, nas páginas seguintes deste folheto, o que vai acontecer com os maus políticos durante o processo da eleição e, melhor ainda, quando as urnas forem abertas para a apuração dos resultados. Você verá quem vai espernear, quem vai chorar a dor da derrota. Vencerá a justiça feita pelos votos do povo, que já está cansado de promessas nunca cumpridas?”

E segue indagando, abrindo os braços e indicando o lado da direita e, depois o lado da esquerda, do grupo de pessoas atentas:

– “Será que é este lado? Ou será este outro, aqui?” A plateia se entreolha, e ri desconfiada. Alguns vão saindo de fininho, deixando o interesse para trás, sabendo que chegou a hora de colocar a mão no bolso. Outros continuam aguardando o que acontecerá. O camelô apanha alguns exemplares do cordel que se encontram expostos em cima do banquinho, no centro da roda, e recomeça a ladainha, oferecendo “por preço módico” o seu cordel, para venda àqueles que desejam conhecer o final daquela história.

– “Aqui no mercado, só tem dois produtos baratos, o meu cordel e o marido da barata. Quem vai querer um? É preço simbólico, você só paga dois cruzeiros, fica conhecendo esta história até o final e ainda ajuda as quatro crianças pobres, lá de casa,” conclui o propagandista, em tom de brincadeira. A plateia ri, enquanto alguns mais chegados à leitura de cordel levantam o braço com a cédula amarela, de dois cruzeiros, na mão. E o camelô dá continuidade a seu trabalho com incrível habilidade, fazendo suspenses para aguçar a curiosidade dos ouvintes. E vende mais um aqui, mais outro ali, e assim vai, vendendo o produto, recheado pela cultura popular do Nordeste.

Tínhamos pela frente mais um ano de eleição, ao estilo daqueles que já conhecíamos há vários anos. As ocorrências, que adviriam das discussões e rivalidades, anunciavam-se imprevisíveis, embora o então pacato povo camocinense não fosse muito afeito às agressões, física ou moral, de maior gravidade, haja vista que, durante muitos anos, foram raras as discussões que levaram seus envolvidos às vias de fato. Até mesmo os partidários mais apaixonados não costumavam ousar com críticas desrespeitosas aos seus adversários, preferindo os elogios a seus partidários, principalmente com paródias que os letristas tão bem sabiam criar, adaptando-as às músicas já consagradas pelos cantores, principalmente as marchas carnavalescas ou músicas de folguedos juninos. Havia inúmeras delas, cantadas pelo povo simpatizante do candidato a quem a letra dos seus versos enaltecia, das quais exemplificamos algumas, a fim de que possamos recordar as campanhas eleitorais, com seus comícios e suas passeatas, naqueles bons tempos nos redutos interioranos.

Há uns versos, que foram inseridos no plágio de uma música, constituindo um dos preferidos dos Cara-Preta, que animadamente cantavam:

– “Temos mesmo que votar / no Murilo Aguiar / foi ele o melhor prefeito / do nosso lugar. / O deputado anima mais a gente, / arranja tudo, é consciente / só no Murilo devemos confiar / e é com ele em quem nós iremos votar”.

Pelo lado do Senhor Alfredo Coelho, da UDN, havia também confiança e vibração. Na campanha de 1958, uma paródia, que era a preferida pelos Fundo-Mole, apresentava, assim, a letra de sua composição:

– “Vai, Edmundo governar o Camocim, / Manoel Gomes junto dele ganha sim, / ganha sim, ganha sim, para o bem de Camocim / Osmundo Campos moço de valor / será eleito pra vereador / e Alfredinho pra deputado, na assembleia será honrado.

Retrocedendo a 1957, que não foi um ano de eleições, ocorreu um fato em Camocim que fazia com que acreditássemos estar em plena campanha eleitoral, naquele dia 03 de março, domingo de carnaval. 

Uma chuvinha fraca e persistente refrescava a brisa que vinha do mar, mas não impedia que a tarde permanecesse agradável, enquanto uma multidão se movimentava nas imediações da Praça da Estação e se distribuía pela extensão do cais. A cada instante, o foguetório pipocava, não dando tempo a que a fumaça se dispersasse antes que novos estampidos pontuassem o firmamento. À frente da multidão, ou envolto por centenas de amigos e correligionários, o então prefeito de Camocim Murilo Rocha Aguiar não escondia a sua satisfação por mais um êxito alcançado durante a sua administração. 

Naquele momento, entrando pela Barra de Camocim, uma draga avança lentamente pelo estuário e se expõe diante dos olhares de uma multidão esperançosa no que seria a redenção do Porto e a realização de um sonho do povo camocinense. Os corações se encheram de alegria e orgulho, pois o Porto de Camocim seria finalmente dragado, a fim de melhorar sua profundidade na entrada da barra e no seu canal de navegação, indo até o cais de acostamento que, nos dias de então, ainda era servido pelo velho trapiche de carnaúbas, de fantástica e inacreditável resistência.

Numa semelhança aos períodos de campanha, as paródias retornaram naquela tarde, com a mesma vibração, trazendo o fundo musical para o povo extravasar sua alegria e homenagear o seu líder. O Antonio da Tó, ou Antonio Catrevage, como também era conhecido, era Cara-Preta de carteirinha e distribuía pequenas folhas de papel com a letra e indicação da música sobre a qual seria executada a paródia. A música escolhida foi a marcha carnavalesca Saca-Rolha, e os Cara-Preta se esbaforiram de tanto provocar os adversários e cantar, seguindo a letra da paródia, que há bem pouco tempo fora datilograda.

“As dragas vão dragar, / a do Alfredo e a do Murilo Aguiar, / a do Alfredo vai para a Santa Maria, pra descascar a melancia / que eles produzem por lá”.

Santa Maria, a que fizeram referência na letra da paródia, era o nome da Fazenda de propriedade do Senhor Alfredo Coelho, a 12 km da sede do município, na estrada, atualmente alfaltada, que liga Camocim a Barroquinha.

A propósito do personagem Antonio Catrevage, o motivo que levou a que lhe colocassem este apelido, foi a mania que o mesmo tinha de cobrir sua bicicleta de enfeites de qualquer espécie, com criatividade ou não, quer fossem lâmpadas de todos os tipos e cores, flanelas, espanadores de lãs coloridas, cobertura da sela, fitas coloridas, flâmulas, buzinas de todos os tipos, tudo isto sem falar nas diversas adaptações inventadas por ele mesmo.

Infelizmente, a draga não desenvolveu o trabalho que deveria realizar no Porto de Camocim, onde trabalhou poucas semanas, finda as quais apresentou um defeito e o conserto não pode ser efetivado. Após alguns meses, a Empresa contratada desistiu do trabalho, rescindiu o contrato e levou a draga de volta ao seu Estado de origem.

Como dizia o meu amigo Artur Queiroz: “ E a vida continua”. E, exatamente com esta expressão, ele intitulou o seu derradeiro livro.

Texto extraído do livro "Memórias de um Saudosista", de José Maria Trévia