Antigamente era trivial o aparecimento de coisas esquisitas, visagens e o lobisomem. Sim, o lobisomem! Coisa do capeta, diziam uns, amancebado que vira bicho de quinta para Sexta-feira, diziam outros.
A crendice popular jura que é um santo remédio para acabar com pixilinga de galinha e galinheiros esparzir, em cruz e nos cantos, areia tirada de rastro de amancebado. É tiro e queda! Temos sempre alguma dúvida sobre façanhas e sucessos desse terrível cabeludo ou cadeirudo, como diz a novela, que apavora todo o mundo, misto de lobo e homem, como o vocábulo sugere, homem que se metamorfoseia em lobo. Sei lá!
Depois, em se pensar na sereia, que é meia mulher e meio peixe... o canto mavioso desse inusitado fenômeno animal da antigüidade, de longas e saudosas melenas, estonteante beleza, encantava marujos embevecidos, a ponto de perderem-se-lhe os navios, menos Ulysses, que vencendo-lhes a sedução de sutil artimanha, fez com que elas, desgostosas, se precipitassem em suicídio dos altos rochedos da Ilha Caprea, como relata em sua ODISSÉIA Homero, notável poeta grego. Será que ainda existem?
Quando o Juvenal narrou como se deu o seu encontro com o tal lobisomem, coisa que todo mundo já sabia, porém sem as minúcias que o protagonista relatou, o caso mudou de rumo: Foi aí pelos idos de 1939. Vinha ele, que morava na Rua da Praia, descendo lá de perto do Campo de Aviação quando o desmantelo ocorreu. Homem destemido, o Juvenal não encontrava empecilhos para suas andanças noturnas, fossem elas quais fossem, e mais então, quando estava com umas e outras na cabeça ou entre os chifres, que cabeça de homem não foi feita somente para abrigo de chapéu e piolhos, em literatura de malandragem.
Lá pelas alturas de meia-noite e meia, que é hora propícia, como dizem, quando o amancebado vira bicho, justamente em encruzilhadas, seus locais preferidos para tais escaramuças. Na Rua Boa-Vista, perto da casa dos Arrudas, ali a coisa aconteceu. Iniciou-se com um estrondo imenso, horripilante, entre ladridos de cães furiosos, e, assim, surgiu, segundo o Juvenal, aquela coisa informe, de chifres, sete olhos, quase todos ao longo do espinhaço escamado, o último na ponta do rabo em forquilha, soltando uivos cavernosos, nuvens de fogo pelas tabocas das ventas; pés de cabra e cor pardacenta.
Quando o Juvenal estava a uns vinte metros da encruzilhada as pernas lhe tremeram, mas ele ainda conseguiu reunir forças para trepar-se numa pitombeira jacente à cerca do quintal mais próximo, e lá aboletar-se, sem se livrar de terrível tremedeira e a fazer cruzes com os dedos, esconjurando o pavoroso monstro.
Para quem não sabe a pitomba é fruto duro de cair, ficando, às vezes, na árvore até a safra do ano seguinte, quando aparece nova floração. Aí se conservam empretecidos e sem valia. Os novos frutos estavam em fase de maturação, mas a pitombeira ficou sem nenhum, tal era a tremedeira do Juvenal, que atingiu-lhe até às raízes.
Como não há mal que não traga um bem, o chão ficou lastrado de frutos, que serviram de regalado repasto para os porcos que ali perambulavam. Segundo o nosso herói, o feio bicho deu cavernoso estrondo ao cantar do galo e, ao tinir de ferros e arrasto de correntes, desapareceu veloz, envolvido em torvelinho de medonha poeira e ladrar de cães furiosos que o seguiram, envoltos em cheiro forte de enxofre.
No dia seguinte, um compadre dele não foi à pesca, pois que apresentava terríveis arranhões no corpo lanhado de mordida de cachorros e quase não abria os olhos, sinal de que a fúria da matilha deixara-lhe por ali a marca de sua insânia. Nunca mais seu amancebado amigo freqüentou forrós e estremecia incontrolavelmente toda vez que ouvia ladrido de cães ou cantar de galo. Juvenal e Onéssimo continuam velhos amigos, porém escabreados e ariscos entre si.
Dá para deduzir que o lobisomem é, incontestavelmente, bicho soturno e da solidão, mistério das noites escuras e tenebrosas, como o ambiente apavorante de fantasmas do Conde Drácula da Transilvânia. Depois que a luz elétrica implantou o seu reino, transformando a escuridão em suave claridade, desapareceram os lobisomens. Tinha até lobisomem aqui da paróquia, de longas caminhadas, fazendo peripécias nas quebradas da serra de Viçosa, e, na manhã seguinte, estava no trabalho, nas Oficinas da Estrada de Ferro, como afirmava o Rosendo da Cruz Filho, apontando para o presepeiro taciturno e arredio. Atualmente, muito raro aparecem, mesmo assim, lobisomens de Segunda categoria, na zona rural, em noite de solidão das invernias, enquanto o galo não canta. Até os terríveis casos de assombração que por aqui proliferavam antigamente, em que enormes morcegões, guarnecidos de longas asas negras, como as do BATMAN, sumiram.
Outro caso singular de assombração aqui em Camocim, já que estamos com a mão na massa, aí vai: faz muito tempo e ainda está na memória do povo, aconteceu em um trecho da Rua Santos Dumont, cruzamento entre as Ruas Boa-Vista e Marechal Floriano – local chamado "Apertada-hora, nome sugestivo, aliás.
Era na Rua do Macedo ou Gameleira o local onde funcionava o devaneio das marafonas da época, com diversão aos sábados, de festas chamadas maxixes, nos salões da Joaninha Margarida e de outras colegas dela. Isto tinha que ser em zona afastada do centro da cidade, onde moravam as famílias, coisa que desapareceu na voragem da globalização.
Como os tempos mudam, estão elas, as meninas, em qualquer local, sem discriminação, inclusive até nos bailes da Elite. Quem vinha de lá para o centro, tinha que passar pelo tal beco "Apertada-hora". Local macabro e desabitado, temido pelas assombrações comentadas. Por ali apenas se passava de dia e, mesmo assim, arredio e desconfiado, com as pernas de sobreaviso para eventual carreira. À noite, nem pensar.
Era necessário um longo contorno por outras ruas, para se evitar o "Apertada-hora", rumo ao centro. Caminhada mais longa, porém acauteladora de presumíveis vexames, horrores e atribulações. Além de estreito e sinuoso, o "Apertada-hora" era ladeado por cercamento decaído, de velhas estacas lugubremente vestidas de musgos e ramos de melão São Caetano, cenário próprio de coisas sobrenaturais, como almas penduradas nos liames das sebes, cabelos hirsutos e desgrenhados, apavorando os atrevidos que por ali ousassem passar em horas mortas.
Apareciam duendes e almas sacanas a soprar nos ouvidos dos transeuntes, com bafo quente e fétido, dos egressos do além. Por isso, lucravam os que vinham do maxixe, mesmo fazendo o longo contorno, tangidos também por alguns laivos de frouxidão, quem sabe? Justamente a meio do caminho, aparecia enorme e apavorante rede atravessada, armada de um lado para o outro da cerca e dela surgia um vulto imenso, tal qual o Adamastor de Camões (Lusíadas), voz de trovão e arfante, cavernosa e lúbrica, acenando: "Vem cá, quero abraçar-te".
Era assim a abertura do monólogo sinistro da alma penada, ao levantar sua cabeça de visagem, abrindo os braços esquálidos.
Eis o retrato sem rebuços do "apertada-hora", que corria na cidade; mais apavorante ainda na quadra invernosa (naquele tempo chovia),quando o mata-pasto crescia, fechando mais e mais o estreito caminho, no roçar das urtigas, que espanavam com um cicio urticante as duvidosas pernas dos passantes.
Certa vez o Junqueira, que era vistoso e corpulento, já depois da meia-noite, hora adequada às visagens e mistérios, quando o maxixe esfriava no escambo das danças, ele, com umas cachaças na cuca, esbravejou: Ora, eu vou é pelo "apertada-hora". Que visagem, que nada! Visagem é coisa de frouxo! Dito isto, mandou-se para lá. Meu irmão, não demorou muito e o berreiro do Junqueira estava no mundão.
Coisa de apavorar frade de pedra, e até a própria visagem. A muito custo, pois que as pernas engrossaram-se-lhe e tremiam mais que vara verde, pesadíssimas, pareciam chumbadas, o nosso herói conseguiu transpor o "Apertada-hora", ainda por cima, além de apavorado, com as calças cheias. A fedentina estava no mundo! Com a língua travada, a muito custo, conseguiu dizer ininteligíveis palavras sem nenhum nexo para as pessoas da Rua da Boa-Vista, que correram a socorrê-lo. Nunca mais saiu à noite, muito menos para aquelas bandas, mesmo com o advento da luz elétrica.
Luiz Gonzaga, em determinada canção, diz: "Sertão do cabra valente, e do cabra frouxo também". Já o saudoso Ponte Preta (Sérgio Porto) sentenciava: "Herói é aquele que não conseguiu correr".
(Foram trocados os nomes para preservar a privacidade dos personagens).