sábado, 17 de junho de 2023

NA FURNA DA ONÇA

Por José Maria Trévia (Escritor Camocinense) 

Vivíamos o mês de julho de 1955. Lembro, perfeitamente, que o verão já se instalara em toda a sua plenitude. 

O sol amarelo e ardente, para os lados do Parazinho, no município de Granja, fazia arderem as nossas costas nuas.

Papai nos premiara com o passeio de férias, à custa do convite que seu primo Mário Trévia fizera, para passarmos alguns dias na Furna da Onça, como era chamada a sua propriedade, encravada naqueles sertões granjenses, seguindo pela estrada de terra que levava ao Distrito de Parazinho.

Passada a ansiedade, que precede toda viagem de criança, chegara finalmente o dia de viajarmos, rumo a mais um recanto desconhecido, onde iríamos satisfazer as nossas curiosidades e descobrir outras realidades, as quais nunca imagináramos existirem tão perto de nós. Naquele dia, acordamos ainda com o escuro e seguimos, de trem, para Granja, aonde chegamos quando a cidade mal acordara.

Na estação ferroviária, situada na periferia do centro urbano, o Chagas e o Pio nos aguardavam, e logo nos conduziram até a casa do senhor Coelho, cobrindo o trajeto comprido da Rua Pessoa Anta e passando ao lado do Mercado Público, o único local onde havia movimento, além da estação. 

Ao nos aproximarmos daquela casa, que era o principal apoio da família do Sr. Mário Trévia, na cidade de Granja, logo avistamos os animais que nos serviriam de condução para chegarmos à Fazenda. Amarrados sob um Fícus Benjamin, bem próximo à Igreja Matriz, cochilavam com expressão de tristeza, enquanto a cauda era continuamente agitada, a fim de enxotar os insetos que insistiam em incomodá-los.

Embora fôssemos parentes, o Chagas nos observava como pessoas estranhas, vindas de uma cidade que ele não conhecia. Talvez nos achasse interessantes pela divergência de alguns costumes ou por algumas expressões diferentes. Confesso que nós, também, observávamos aquele nosso parente ainda desconhecido, envolto na sua enorme calma, achando-o tímido e engraçado, com sua fala meio atrapalhada e que, às vezes, não conseguíamos entender.

A hospitalidade do senhor Coelho, um velho amigo do “seu” Mário Trévia, logo nos foi externada, tendo em vista o seu jeito cordial de nos levar à mesa onde o café já estava servido. Rapidamente, “quebramos o jejum”, expressão utilizada por ele mesmo, enquanto nos servíamos do café com leite e pão passado com manteiga-da-terra.

Era hora de pegarmos a estrada para cobrir o outro trecho de nossa viagem. Fui colocado sobre a cangalha de um jumento, onde me fui acomodando e até achando confortável. Mudei de idéia, a respeito do suposto conforto, logo depois de percorrer um ou dois quilômetros sobre a dureza daquela montaria, mas mantive consciência de ser obrigado a suportar uma légua e meia que ainda teríamos pela frente. Logo na saída da cidade de Granja, passamos pelas águas rasas no leito do Rio Coreaú, onde ele atravessava o nosso caminho, e iniciamos nossa aventura, em busca da Furna da Onça.

O sol já ia alto quando chegamos ao nosso destino. Antecipei-me um pouco, tomando a frente dos outros, e parei em frente ao alpendre da casa, onde Dona Maria, esposa do senhor Mário Trevia, debulhava feijão, auxiliada por uma de suas filhas. Fiquei a observá-las, calado, pois não sabia o que falar.

- Apeie-se, disse ela.

Continuei parado sobre a cangalha, pois não conhecia aquele verbo, mas Dona Maria entendeu.

- Desça do jumento, insistiu ela.

Com certa dificuldade, tentei descer, segurando a cangalha e escorregando pela barriga do jumento, mas logo fui amparado pelo Dedin. Todos já haviam chegado, e a casa, que já era movimentada com as dezesseis pessoas que a habitavam, agora se mostrava mais animada.

A casa era uma construção grande, porém simples. À frente, um alpendre que terminava com o compartimento que era, ao mesmo tempo, depósito e oficina de faz-de-tudo, do Sr. Mário. Logo ali, apegado, ficava o chiqueiro das cabras. Do outro lado, a espaçosa casa-de-farinha e sua enorme roda de madeira atrelada ao caititu, e uma prensa, com o seu fuso central, incumbida de espremer a massa de mandioca. Ao fundo, o forno ocupava-se, durante aquele seu período de inatividade, com a serventia de receber em sua bandeja os apetrechos que, invariavelmente, são encontrados aos montes, nas nossas típicas casas do campo.

Embora morássemos em Camocim, uma cidade interiorana, aqueles dias vividos na zona rural foram uma experiência inesquecível. À noite, as lamparinas e faróis a querosene eram as únicas fontes de iluminação, o que tornava mais restritas as nossas opções de ocupação. Por isto, dormíamos muito cedo e, também, cedo acordávamos.

Durante o dia, sempre encontrávamos as mais diversas oportunidades de participação naquele diferente modo de vida. O Chagas, talvez pela proximidade de sua idade com a minha e a de meu irmão Carlos Augusto, foi o nosso maior parceiro, nas andanças e nas descobertas dos costumes do campo.

- Aonde você vai? Pergunto, enquanto observo o Chagas colocando os grajaus no burro de carga, ajustando as alças de cordas para laçar os cabeçotes das cangalhas.

- Vou quebrar milho na roça, responde ele, coçando a cabeça com a mesma mão com que segura a aba do chapéu de palha.

Surgia, naquele momento, mais uma chance de participar de algo diferente. E não me fiz de rogado, já que o objetivo era não deixar que a rotina se instalasse em nossos dias.

- Eu vou, também. E fui logo tratando de chamar o Carlos Augusto para compor a pequena comitiva.

E lá fomos os três, ou melhor, os quatro, já que o burro era o mais trabalhador da equipe e não merecia ficar de fora da contagem. Distanciamo-nos da casa, contornamos o primeiro cercado e atravessamos o descampado que, às vezes, servia de campo de futebol. Caminhamos menos de um quilômetro e passamos por um corredor com cercas dos dois lados, para, finalmente, chegarmos ao roçado. O milharal estava totalmente seco e, suas espigas, todas com os cabelos voltados para baixo, resultado da “viragem” feita, quando as mesmas, amadurecidas no final do inverno, foram viradas, como medida de proteção contra a penetração de água e o consequente apodrecimento.

Não demorou muito tempo para que os dois grajaus estivessem repletos de espigas. Retornamos satisfeitos, cipó na mão, imitando o Chagas, e emitindo pela boca aquele som, o qual, como um passe de mágica, fazia o burro caminhar. De quando em vez, soltávamos um “psiiil” só para confirmar a obediência do burro, que parava, instantaneamente. Era bom demais, aquele animal entender e obedecer às nossas ordens.

- Chagas, quem foi que ensinou isto a ele?

- Sei lá! Acho que ele aprendeu sozinho, respondeu o Chagas, falando pra dentro, de forma quase inaudível, querendo livrar-se da minha incômoda pergunta.

- Então, ele não é tão burro como a gente diz, contesta o Carlos Augusto, catucando levemente as ancas do animal, com o cipó.

O Chagas não dá ouvidos ao comentário e instiga o animal a apressar o passo, provavelmente buscando encerrar o complicado assunto, sobre a inteligência daquele animal.

Foram vários os dias que passamos nos domínios do Sr. Mário Trévia, o qual pouco interferia em nosso cotidiano, a exemplo de Dona Maria. O nosso temor era da disciplinadora Fransquinha, a filha mais velha, como ficou comprovado naquela tarde em que fui flagrado por ela, numa briga acirrada com o Carlos Augusto, dentro do chiqueiro das cabras. A platéia, composta pelo Dedin, Antonio, Pio, Chagas, Toinho, que havia incentivado a disputa, todos eles receberam dela uma sonora repreensão, e permaneceram calados. Fransquinha recolheu as camisas dos brigões, mandando-os, imediatamente, para a cacimba, a fim de banharem-se. E dispersou o grupo dos desconfiados agitadores.

Naquela época, meninos de minha idade tinham aversão a que alguém insinuasse que estavam de namoro com alguma menina. Para meu tormento, os provocadores passaram a dizer que a filha do senhor Mário, de nome Dalva e idade próxima à minha, era minha namorada. Para completar o acesso fácil às provocações, fazia muito sucesso na época uma música sobre o amor de um jovem e uma donzela chamada Dalva, e cujo pai, muito valente, era o Zé Lotero.

- “Acertei meu casamento/com a filha do Zé Lotero,/ eu queria, ela queria,/o velho disse eu não quero/se roubar a minha filha vai,/vai morar no cemitério”, diziam os versos iniciais da música. Entretanto, o pretendente não desistiu da jovem e o desfecho final foi uma bonita festa de casamento.

- “Roubei a Dalva e cumpri meu juramento,/no dia do casamento/Zé Lotero veio me ver,/fizemos as pazes e ele, então, disse sincero,/batize de Zé Lotero/o bruguelo que nascer”. Para mim, era provocação até demais.

Talvez, por me considerarem um tanto proativo, havia sempre alguém querendo explorar minhas características, usando-me como bode expiatório ou alvo das peças que, para ser pregada, evidentemente, necessitavam de uma vítima. Fora disso, praticamente não me deixavam participar de nada.

Num domingo, após o almoço, percebi a movimentação de boa parte dos adultos da casa, vestindo suas roupas domingueiras e as mulheres se pintando, enquanto os homens arreavam animais de montaria, denotando, claramente, que havia passeio à vista.

- Fransquinha, para onde vocês vão?

- Vamos para o Aratainho, respondeu ela, ao lado de minha irmã Maria José, enquanto passava ruge nas maçãs do rosto.

Eu desconhecia que Aratainho era um lugarejo, distante alguns quilômetros dali, mas o que eu queria era passear, pouco importava onde seria.

- Eu, também, vou com vocês, disse eu, como se detivesse algum poder de decisão.

- Você não pode ir com a gente, não é passeio pra menino, tem muito espinho, não presta pra você, retrucou, firmemente, a Fransquinha, fazendo-me ver que seria inútil insistir com ela. E, retirei-me pensativo, sobre o fracasso da investida.

Entretanto, eu ainda não havia desistido de passear no tal de Aratainho, quando visualizei o Dedin, arreando o cavalo, e sendo observado pelo meu irmão Toinho.

- Dedin, você vai para o Aratainho?

- Vou, respondeu ele, laconicamente.

- Você me leva?

- Levo, disse ele, rindo.

Corri para apanhar o chapéu de palha, sempre disponível no alpendre e que a Fransquinha recomendava usar sempre que saísse nas horas de muito sol. Retornei rápido quando o Dedin, já montado no cavalo, oferecia o braço para ajudar o Toinho a subir na garupa.

- Dedin, e eu, onde vou?

- Você segura no rabo do cavalo e vai correndo atrás da gente. Se você aguentar, depressa a gente chega lá, respondeu ele, soltando uma gargalhada e esporeando a montaria, que partiu a galope. Funguei de raiva, olhando-os atravessarem o descampado e pegar o caminho do Aratainho, sob o sol escaldante daquele começo de tarde de verão. Fui, em seguida, queixar-me à dona Maria.

-Não ligue pra isso, não, meu filho! Fique aqui, comigo, vou-lhe contar a história do menino que caiu do cavalo. E começou a narrar, enquanto eu me limitava a observá-la, calado, até retirar-me aborrecido, sem ouvir o final da história.

Certo dia, próximo à hora de almoço, Fransquinha mandou que Toinho, meu irmão, fosse ao compartimento dos fundos da casa e retirasse uma cuia de farinha do caixão, que servia para guardar aquele mantimento. Era um caixão enorme, tendo em cima uma tampa quadrada de 50 centímetros de lado, aproximadamente. A quantidade armazenada já era relativamente pequena, não permitindo que o seu conteúdo fosse retirado, sem que alguém descesse ao seu interior. Toinho nunca dispensou uma oportunidade de me pregar peças. Talvez já pensando em algo dessa natureza, convidou-me para ajudá-lo a cumprir a tarefa, que a Fransquinha lhe havia confiado.

- Você desce para dentro do caixão e me entrega a cuia cheia de farinha. Aí, eu ajudo você a subir, disse ele, com ares de quem cumpriria a promessa.

Com a melhor das intenções, aceitei a proposta e desci ao interior do depósito. Entreguei-lhe a cuia de farinha e quando aguardava ajuda para subir, vi a tampa do caixão ser fechada. Desesperado, cheio de raiva e de medo, pus-me a gritar, pedindo ajuda. Por sorte, alguém me ouviu ou, por outra, a Fransquinha percebeu que havia algo de errado, saindo em busca do paiol, onde encontrou o peralta, sentado em cima da tampa, balançando as pernas e batendo os calcanhares na lateral do caixão.

- Você não tem juízo, não? Isso é coisa que você faça? Tire, já, o seu irmão daí!

E o cara-de-pau ainda ria, enquanto esticava o braço para ajudar-me a subir.

Essa foi mais uma, dentre as tantas pelas quais passei, lá na Furna da Onça, quando os mais velhos resolviam fazer troça dos menores, inclusive quando furtavam minha bola e corriam em busca do descampado para jogar. Mas, eram pequenas coisas que logo ficavam esquecidas e, hoje, são relembradas com saudade.

O Chagas era uma boa companhia. Conhecia tudo daqueles lugares, a natureza e seus animais, e fazia com que olhássemos com admiração os seus desafios. A cobra verde, com que ele gostava de brincar quando encontrava alguma, servia para demonstrar que não sentia medo.

- Não faça isto, Chagas, ela pode morder você!

Ele ria e falava com mansidão, ao estilo de seu pai.

- Essa cobra “véia” num faz nada, não. Ela nem tem veneno!

Os dias passaram e era hora de voltar para casa. Precisávamos finalizar nossas despedidas por volta de três horas da tarde, a fim de chegarmos à estação de Granja antes do final do dia, quando, então, apanharíamos o trem de volta, para Camocim.

Naquele dia, o meu retorno para Granja foi na garupa do cavalo do Sr. Mário. Todos os outros passaram à nossa frente, e se apressaram, até que os perdemos de vista. O sol ainda estava quente e a calma do Sr. Mário era condizente com a lentidão da montaria. Quase sempre se mantinha no passo ordinário e, raramente, arriscava breves instantes, troteando. De quando em vez, um comentário sobre um Pintassilgo, um Galo-Campina ou alguma coisa diferente no caminho, talvez para aferir a quantas eu me sentia, como garupeiro. Mas, eu quebrei o silêncio, uma vez.

- Sr. Mário, eu estou com sede!

- Logo ali adiante tem uma casa, respondeu ele.

- O senhor, também, está com sede?

- Meu filho, eu sou como veado. Quando encontro água, eu bebo.

Suas respostas, na maioria das vezes, soavam como metáforas ou ensaios de lições de vida.

Logo após a primeira curva, avistamos a casa a que “seu” Mário se referira. Para mim, não causara surpresa a imediata confirmação da existência daquela habitação, pois “ele conhecia tudo ali, como a palma da sua mão”. Alguém me forneceu um caneco de alumínio com água, que bebi com indisfarçável avidez, e sem deixar a garupa do cavalo. O “seu” Mário também bebeu um pouco, ao fim do que deu uma sacudida no caneco para jogar, ao léu, as últimas gotas d’água. Antes de agradecer, perguntou por alguém, talvez o dono da casa. E partimos.

Ao entardecer, chegamos à estação ferroviária de Granja, onde aguardamos, ainda, durante quase meia hora, até que a Maria Fumaça apitasse, ao atravessar a majestosa ponte metálica sobre o Rio Coreaú, anunciando sua chegada e advertindo os transeuntes, que cruzavam o seu caminho de trilhos e dormentes.

Nunca mais voltei à Furna da Onça, mas, inúmeras lembranças continuam a povoar a minha memória. O canto inconfundível dos capotes, abrigados nas moitas, em volta do terreiro, e o balido das ovelhas, ao entardecer, tornaram-se, para mim, as marcas sonoras daquela típica casa sertaneja, acalentando saudosas recordações de minha infância.

Texto extraído do livro "Outros Tempos", de José Maria Trévia