terça-feira, 9 de janeiro de 2024

MATA-BURRO

Por Avelar Santos* 

Naquela cidadezinha, banhada pelos verdes mares bravios da Terra da Luz, acaso alguém perguntasse a qualquer um de seus pacatos habitantes, em meados do século passado, se conhecia certo carroceiro, de meia idade, alcunhado de mata-burro, que andava sempre com o chicote pronto a fustigar, vezes sem conta, o pobre animal que o ajudava a ganhar o pão de cada dia, todos responderiam afirmativamente, sem pestanejar.

Naquela época, as carroças eram o meio de transporte que existia para se fazer pequenos fretes ou até mesmo mudanças, compondo, por si só, o ar provinciano da urbe.

Além de se posicionarem, estrategicamente, nas proximidades do mercado, prontas a atenderem aos clientes fiéis, elas se perfilavam, também, ao longo do cais e na Praça da Estação, mormente à tardinha quando o trem, em apitos de silvos longos, alegres, anunciava, com grande pompa, a sua chegada.

Nessas ocasiões, ao passar como um foguete pela Engenheiro Privat, com o burrico, de olhos vítreos, coitadinho, resfolegando de cansaço, clamando por piedade, o carroceiro se fazia acompanhar por um garoto sardento, de semblante tristonho, cabelo espetado, magérrimo, que era responsável pelas encomendas pequenas.

Certa feita, tempos depois, morando há alguns anos na capital alencarina, estava na companhia de dois irmãos, no bar do Zé Augusto, no Monte Castelo, quando, para nossa surpresa, nos deparamos com o filho do Mata Burro, que ali se encontrava fazendo uma entrega de cerveja.

Era finzinho de tarde!

Terminado o serviço, ele se sentou numa mesa próxima àquela em que estávamos, e, após um mergulho profundo nas suas lembranças, reconhecendo-nos, veio ao nosso encontro.

Depois das saudações de praxe, com as loiras geladas desanuviando um pouco a angústia que o consumia, ele começou a falar do pai.

Disse, com lágrimas nos olhos, da saudade que sentia dele, que lhe corroía a alma, dos anos da mocidade vividos na terra natal, da pobreza extrema que o levara a sair muito cedo de casa.

Diante daquela torrente de sentimentos, do riacho da emoção que fluía, caudaloso, ficamos, por um breve momento, silenciosos, sem encontrar palavras que pudessem consolar a dor do pobre homem.

E a conversa se estendeu ligeira noite adentro!

Por fim, ao se despedir, falou algo que muito nos comoveu: acreditava na misericórdia infinita de Deus, que, certamente, havia acolhido o seu pai, no paraíso, lavado que fora no preciosíssimo sangue do Cordeiro, no madeiro da cruz, sendo recebido por ELE, com um sorriso no rosto, quando da sua chegada à morada celeste.

Dizendo isto, ele foi embora.

E ficamos, ali, cada um repassando, no pensamento, aquele amoroso gesto filial, cheio de gratidão ao Criador por perdoar as fraquezas humanas, a dureza de tantos corações, inclusive àquelas de seu pai.

Saímos dali envoltos pelo manto da certeza do amor incondicional do Paizinho do Céu, por todas as suas criaturas, por nós mesmos, e que o velho carroceiro descansava em paz.

*Professor e Escritor Camocinense