domingo, 10 de março de 2024

NO TEMPO DOS JACARÉS

Por Avelar Santos*

Um dia desses as primeiras chuvas do ano banharam a cidade, e, nostálgico, abri as bolorentas gavetas da mente, desembrulhando, bem devagar, pedaços do passado mais distante.

E comecei a remontar, com um aperto de saudade, no peito, o quebra-cabeça mágico dos tempos da meninice fagueira.

Naqueles idos anos, logo que a caravana solene de nuvens cinzentas escurecia o firmamento e o vento forte açoitava as árvores, anunciando o "toró" iminente, a garotada, driblando, muitas vezes, ordens expressas dos pais, para não sair de casa, reunia-se, toda prosa, na pracinha da estação.

Dali, numa algazarra sem fim, percorria-se as ruas, disputando, cada um, os melhores jacarés para um delicioso banho de chuva.

Na amada Engenheiro Privat, os locais mais concorridos eram a Casa Carneiro Veras, a Capitania dos Portos e o Camocim Clube. 

Nesses pontos havia vários desses répteis metálicos gigantes conduzindo um caudaloso rio celestial.

A força da água chicoteava as costas, e, de tão fria, deixava as mãos enregeladas, e, os lábios arroxeados.

Após meia eternidade, refestelados pela chuvarada, com a alma exalando paz, todos se dirigiam até o Bola Branca, onde mergulhávamos no mar de cor de esmeralda.

Muitos, mais afoitos, com as camisas postadas, na cabeça, como turbantes árabes, despencavam em direção ao velho trapiche, levados ao sabor das ondas da maré enchente.

Aquele era o sinal de que a festa terminara, e que devíamos, o quanto antes, retornar ao aconchego do lar.

Com um pouco de sorte, entrava-se sem ser notado por ninguém, na residência, e, ato contínuo, enxugava-se o corpo, vestindo-se roupas limpas.

Depois, fazia-se uma incursão à cozinha, atrás de alguma guloseima, no mais das vezes doce de goiaba com um pedaço generoso de queijo de coalho.

Aquilo era simplesmente um manjar dos deuses, que renovava as energias gastas, sobrando, ainda, glicose suficiente para outras tantas estripulias.

E assim seguia feliz a vida, repleta de infinitas bênçãos e constante aprendizado.

O dragão da tecnologia consumiu vorazmente as coisas simples que nos enchiam o coração de puro contentamento, ao participarmos de brincadeiras singelas, que, infelizmente, viraram fumaça: jogar bila, soltar pião, andar de carrinho de rolimã, empinar papagaio...

Que pena as crianças de hoje não desfrutarem desta magia!

Comedida, asséptica, a meninada moderna alheia-se do mundo real, preferindo navegar, por horas a fio, pelos mares bravios da web, sem bússola alguma, aventurando-se, perigosamente, no oceano desconhecido, sem notarem, pobrezinhas, que nenhum segundo vivido jamais retroage.

Eis que os pacatos jacarés de outrora perderam-se, pobres infelizes, nos meandros do rio da civilização cibernética, restando, deles, somente a lembrança.

*Professor e Escritor Camocinense