sábado, 20 de abril de 2024

JANETE

Por José Maria Trévia 
(Escritor Camocinense)

É bastante provável que o título desta narração leve a crer que fazemos referência a uma mulher. 

Entretanto, não é este o sentido do nome que intitula o fato a ser narrado. Janete foi um navio que, por motivos nunca totalmente esclarecidos, causou grande surpresa à população, quando virou e afundou em pleno porto de Camocim. 

Após a transcorrência de meio século, o afundamento e o resgate do Janete já chegaram próximo ao esquecimento, mas, para alguns, que ainda cultivam essas lembranças, as explicações dadas por populares, em torno da ocorrência, continuam a ser classificadas como duvidosas ou controvertidas. Felizmente, para nós, não é prioridade a análise das causas ou dos possíveis erros, que levaram o Janete a passar vários meses, parcialmente, submerso.

Ainda era cedo, naquela manhã de um dia qualquer da segunda metade da década de 1950. O sol mal despontara acima dos manguezais, refletindo fortemente o seu clarão nas águas do estuário do rio que deleita Camocim, e eu me encontrava à porta da casa de meu tio, na praça da estação ferroviária. Aguardava, com a leiteira de alumínio na mão, que alguém me viesse entregar o leite “in natura”, proveniente da vacaria, instalada no extenso quintal daquela casa, que se estendia até a outra rua atrás.

Àquela hora, era bem pouca a movimentação de pessoas naquele trecho. Parecia que a minha pacata Camocim ainda se espreguiçava, tal o caminhar sonolento e preguiçoso de um ou outro transeunte, voltando do mercado. Nas mãos, a cesta de cipó e o saco de pão, caprichosamente, feito de tecido bordado e a boca franzida, enforcada pelo cordão.

Meu olhar percorria a praça, contava, mentalmente, os bancos, admirava as Espadas de São Jorge, no meio da grama, que tinha o mesmo verde do frondoso Ficus Benjamim do Hotel do “Seu” Holanda. Em seu roteiro, minha visão circula e examina o lado oposto, até divisar a bomba de gasolina na calçada do Enoque Passos. A distração é quebrada por alguém que me entrega o leite.

- Tire a tampa da leiteira!

Obedeci ao pedido, formulado com ares de ordenança, e senti o cheiro do leite puro, que respingava na minha mão, ao ser despejado na vasilha. Preparava-me para retomar o caminho de casa, quando tive a atenção desviada por um carreteiro, eufórico, noticiando algo, com o braço estendido, apontando para o cais.

- O Janete virou, ali, no segundo trapiche. Está afundando!

A curiosidade tomou-me por completo e senti imensa vontade de presenciar aquele estranho acontecimento, caso fosse verdadeiro.

- Eu jamais vi um navio afundando, pensei. Além disso, era tão pertinho, bastava atravessar a praça, contornar a estação e caminhar, uns cem metros, em direção à Praia dos Coqueiros. De leiteira na mão, fui matar minha ansiedade e confirmar, ou não, a veracidade da ocorrência.

Mesmo antes de chegar ao local, pude ter a certeza de que algo fugira da rotina, tendo em vista a presença de outros curiosos, que já se aglomeravam nas imediações do trapiche do Albuquerque. Aproximei-me e, assustado, vi o Janete adernado, com parte do fundo do casco à mostra. Ouvia-se, ainda, o barulho de algum motor, funcionando em seu interior, certamente em algum compartimento que, até então, não havia sido tomado pelas águas. Pequenas ondas borbulhantes circundavam o imenso costado de ferro, pintado de uma cor acinzentada. 

Sobre o trapiche, uma grande movimentação de homens da tripulação, que manuseavam pesados cabos de aço, num trabalho insano, para manter a embarcação encostada no atracadouro. De vez em quando, um tambor vazio era expelido do interior do Janete e atirado para cima, com grande força, projetando-se vários metros acima da água, indo cair, pesadamente, para se integrar às outras tantas coisas que deslizavam na correnteza. Retornei, apressado, para casa, ansioso por passar a notícia em primeira mão e interromper a monotonia daqueles dias iguais.

Passaram-se meses, o Janete permanecia aprisionado, poluindo as águas com um produto malcheiroso, que apodrecera em seus porões. Segundo alguns, era torta de algodão, para alimentação animal, que fazia parte da carga que recebera em Camocim e proveniente, via férrea, de uma usina de beneficiamento de Sobral. Para outros, uma partilha de milho também entrava na composição da carga apodrecida.

Havia sempre quem fizesse comparação com algo que exalasse cheiro desagradável e o indesejável produto fétido, o qual ficou conhecido popularmente como “a torta do Janete”. Todavia, isso não impedia que continuássemos a freqüentar o banho de mar com os indispensáveis saltos do trapiche. Havia os mais destemidos, como o Cafuçu, menino pobre da periferia e libertário freqüentador das ruas e das praias. Como exímio nadador, desafiava as regras e, sob os protestos do guarda, que brandia o cassetete, mergulhava para tocar o sino, no convés do Janete adormecido.

A lida de alguns tripulantes, em torno do Janete, continuou durante os meses que se sucederam. Nas horas de maré baixa, o navio ficava com boa parte de sua estrutura acima da linha d’água, permitindo que flutuantes, compostos de madeira e tambores, fossem amarrados às suas partes fixas, ajudando-o a flutuar e impedindo que se fixasse na lama do fundo do canal. 

Foram, também, utilizados alguns balões especiais, que eram colocados nos porões e, ao serem inflados, ocupavam o espaço e expulsavam a água daqueles compartimentos. Essas tarefas eram orientadas por um engenheiro conhecido por Dr. Tokar, de uma empresa contratada, na capital pernambucana, para realizar o serviço de resgate do Janete. 

O engenheiro contava, ainda, com o apoio de dois técnicos auxiliares, um dos quais atendia pelo nome de Jean. Esses esforços seqüenciados foram surtindo seus efeitos até um dia de maré-grande, quando a natureza, novamente, resolveu ditar as regras.

Assim, na tarde daquele dia, quando a fase da lua propiciava a composição máxima das forças de maré, o Janete passou a mexer-se, como a se rebelar contra as espias, que o aprisionavam. Parecia um monstro marinho, próximo a enfurecer-se, e diante do qual não havia força capaz de detê-lo. A maré alta e os flutuantes, presos ao seu corpo, delinearam a situação propícia para a libertação. 

O Janete começou, pois, a sua disputa de cabo-de-guerra, com os cabeços e as argolas de ferro, implantados no cais. Entretanto, não foi preciso que ele vencesse a firmeza desses suportes e os arrancasse de suas bases de concreto, vez que os cabos de sisal e de aço foram cedendo e partindo-se um após outro. Inicialmente, esticavam-se, tentando resistir, mas a força brutal do Janete desfiava-os, como se fossem meros barbantes, diante de uma tração desproporcional. Partiam-se, zunindo no ar e, como um chicote, açoitavam, ameaçadoramente, a superfície das águas. E o Janete desce, então, na correnteza, em direção ao outro trapiche. 

Vi homens frenéticos, nadando com suas facas-peixeiras seguras na boca, interceptando o seu avanço, para cortar as amarras que o prendiam aos flutuantes, numa ação inversa àquela que fora idealizada para fazê-lo voltar à tona. A grande massa de ferro passou rasgando a ponta do trapiche, arrancando mourões de carnaubeiras, como se fossem simples peças, enfileiradas, de um dominó, indo encalhar adiante, na parte mais rasa dos bancos de areia da Pedra do Mero. Por medida de segurança, foi novamente imobilizado e dali, posteriormente, retirado pelo rebocador Camocim, para um estaleiro improvisado na Praia dos Coqueiros.

O Janete não havia morrido. Depois de meses, submetendo-se ao trabalho de consertos e reparos básicos, foi rebocado, por outra embarcação, com destino a Belém. Nos estaleiros da capital paraense, foi submetido a reparos mais acurados e retomou o seu destino, voltando para o mar, a fim de enfrentar novos desafios. 

Assim, retornou ao mar, com nova identidade, vergando, em sua proa, o nome de São Luís, após ter sido comprado pelo empresário- salineiro Wilson Carneiro, do município de Chaval. Entretanto, não mais se ouviu falar que tenha aportado ao cais que o subestimou. Imagino ser a história do Janete uma lição de liberdade. 

Ele jamais aceitou aquele canal portuário, como túmulo ou última morada, tampouco como prisão temporária, de onde os homens não foram capazes de libertá-lo. Tomou, então, a iniciativa de romper os grilhões que o aprisionavam e, com a cumplicidade do mar, seu velho aliado, rebelou-se. Ele só queria sair, emergir e mostrar que ainda era capaz de navegar.

Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado".