sábado, 8 de junho de 2024

O CASSINO

Por José Maria Trévia (Escritor Camocinense)

Àquela hora da manhã, a sala de jogo ainda fedia a sarro de cigarro, o ar ainda ardia impregnado do odor de nicotina da noite passada. 


O cinzeiro, abarrotado de baganas e cinzas, permanecia sobre a mesinha, recostada à parede, ao lado da garrafa térmica e xícaras sujas de café. Localizada quase no centro, a mesa redonda de madeira pesada, coberta com tecido grosso e as bordas presas, por baixo, o que a tornava acolchoada, para receber as cartas sobre a superfície macia.

Enquanto observo o ambiente, escuto a tosse carregada do Pedro Chicó, fumante inveterado, na sua barbearia, instalada na pequena ante-sala, por onde, forçosamente, temos de passar para chegar ao antro da jogatina. Alguém faz chacota de sua expectoração e ironiza o efeito benéfico que o suposto remédio lhe está causando.

- Esse seu remédio é muito bom, Pedro. A gente já percebe que você está bem melhor.

Ele ri e continua o seu trabalho, mas responde com uma ofensa à mãe de quem falou.

Descubro a lâmpada Petromax, suspensa pelo gancho de arame, preso ao caibro de maçaranduba, única fonte de iluminação que realmente satisfaz aos freqüentadores do cassino, quando o fornecimento de energia elétrica é suspenso às onze da noite.

Na rede de tucum, no canto do fundo da sala, o Boca-Roxa tenta dormir, mas, o sono é perturbado pelo entra-e-sai e pelos sobressaltos resultantes de horários desregrados de quem sobrevive, fazendo biscates no cassino.

Na noite passada, o Piragibe esteve aqui, rindo com aquela expressão de felicidade, enquanto distribui onze cartas para cada participante, apostando um pouco do modesto salário de faroleiro. Mais tarde, certamente, ele estará ali pela calçada da loja de meu pai, conversando animadamente e fazendo comentários sobre os azares de alguns e os blefes de outros, sem deixar, evidentemente, de analisar as estratégias da formação de uma canastra, que o salvou do prejuízo.

- O Capitão estava marcando, mas eu sabia que ele precisava pegar o bagaço para formar uma canastra - dizia ele - gesticulando animadamente, com o cachimbo na mão e soltando sua gargalhada inconfundível, como se parte dos sons permanecessem presos à garganta.

Alguém entra na sala para perturbar ainda mais o já conturbado sono do Boca-Roxa. Amassa um pedaço de jornal enrolado em forma de pavio e o coloca entre os dedos dos pés do desafortunado sonolento. Risca, então, um fósforo, e ateia fogo em ambos os lados do pavio. 

É uma aflição terrível, a pobre vítima acorda atordoada, sem saber de onde vem aquela queimação e sai pulando em uma perna só, feito um Saci-Pererê, tentando livrar-se daquele fogaréu. Mas, não há como retirar o material combustível que alimenta o fogo e o aperreio faz com que os dedos dos pés se contraiam cada vez mais.

A essa altura, outros desocupados já assistem ao espetáculo e, entre risos, escutam as ameaças de revide por parte do zangado e inofensivo Boca-Roxa. Debelado o incêndio, ele se aproxima da janela que dá para a área lateral, olha para o tempo, joga fora uma cusparada e pensa nos seus algozes.

- Magote de vagabundos...! Deixa estar... Eu tenho um pé de cá-te-espero...

O Chagas, dono da casa de jogo, não aprovava esse tipo de brincadeira, porém, sua ausência era oportuna para os aproveitadores. Com sua índole serena, buscava manter o equilíbrio no ambiente, até porque, embora se tratasse de um cassino modesto, era freqüentado por pessoas bem conceituadas nos meios camocinenses e se mantinha imune à presença de aventureiros.

Meu pai não era um freqüentador assíduo daquela casa de jogo. Gostava, vez por outra, de participar do carteado, principalmente quando os convites partiam de amigos que iriam compor a mesa.

- Só temos três, mas o Chagas completa a mesa, diz o Piragibe, ansioso por uma partida de buraco.

Assim, deixando de ser o servidor neutro, o próprio dono do cassino entra no jogo, a fim de corrigir o desfalque. Estavam formadas as duplas que disputariam os pontos das canastras, expostas, em forma de leques, sobre a mesa acolchoada.

O jogo devora rapidamente a tarde, sedimentada de queixumes e risadas, que se alternam e se misturam, a cada intervalo entre as partidas. O perdedor resmunga algo com o baralho, o Pedro Chicó tosse alto na sua barbearia e alguém receita um rosário de sabugos, em volta do pescoço, para amenizar a crise. A resposta, como revide, é igual às outras, ainda que a mãe ofendida já seja de um outro desocupado. Peruando o jogo, o Boca-Roxa dá uma volta em torno da mesa e retorna para a cadeira que está sobrando, perto da janela. O Capitão continua sério e muito calado, mas sorri, diante dos comentários alegres do jocoso faroleiro, que colocou no próprio sogro, tempos atrás, o apelido de Pedro Lambança.

Meu pai consulta o relógio e mexe-se na cadeira, como quem ensaia ou insinua uma retirada estratégica, vez que a tarde começa a morrer.

- Vamos jogar mais uma, Zé Trévia !

Papai passa a mão na cabeça, meio se espreguiçando, consulta de novo o relógio e atende ao convite do Piragibe.

- É... Vamos !

Ouvem-se batidas de janelas na ante-sala e o Pedro Chicó coloca as tramelas, enquanto pita mais um assassino de seus pulmões. Com esforço, prende a tosse, para não se ver obrigado a xingar a mãe de alguém. No canto da sala de jogo, o Boca-Roxa examina a bolha entre os dedos dos pés.

- Magote de vagabundos...! Deixa estar... Eu tenho um pé de cá-te-espero...

Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado".