sábado, 28 de dezembro de 2024

O NAVIO GREGO

Por Avelar Santos*

Corria o ano de 1965! 

Inexpugnável aos avanços intermináveis do tempo, a cidadezinha daquela parte do litoral oeste da terra da Luz vivia sem pressa cada dia, feliz. 

Seu aspecto sereno realçava ainda mais sua graça infinita. Exposta ao sol de maneira cativante, nada lhe conseguia tirar de sua letargia, de sua indolência peculiar.

Nem a Revolução - que diziam ter havido - ousou acordá-la de todo. O fato foi aceito naturalmente por seus pacatos moradores, e, como não podia ser de outra forma, tudo permaneceu como antes.

Eu tinha oito anos! Conhecia cada palmo de seu chão, cada nuvem de seu céu, cada verde dos manguezais, cada onda de seu mar. Sentia-me como Adão a percorrer o Paraíso.

No cais improvisado, rústico, a entrada e saída das embarcações obedecia a um cronograma ordenado. 

Nesse ir e vir constante de tantas embarcações, que emolduravam magnificamente nosso cotidiano franciscano, cujos apitos plangentes, doídos, reverberavam pela imensidão dos ares, calando a alma, inclusive a almazinha de um garoto. Não tardou muito para eu ficar fascinado com o apelo mágico dos navios.

Minha velha casa ficava de frente para o mar. Da janela, entreaberta, observava, tangendo coisas do futuro, o caminhar e recuar incessantes das marés. 

A vigília sempre compensava! Exceto o encarregado da Marinha, eu era o primeiro a dar as boas vindas ao visitante que chegava. 

Quando ribombava o apito intermitente anunciando a sua entrada, na baía, eu me tornava no mais espetacular velocista que o mundo já conheceu, melhor mesmo que o grande Jesse Owens, que, na Olimpíada de Berlim, em 1936, ganhou a medalha de ouro no salto em distância, nos 100 m e 200m rasos, além do revezamento 4x100 m, deixando Adolf Hitler, que se encontrava no estádio, deveras furioso, por que aquele negro americano acabara de desmitificar, com seu feito magistral, a pretensa pureza da raça ariana. 

Assim, dentro de poucos segundos, lá estava eu, postado no velho trapiche, admirando as manobras dos “paquetes” para atracar.

Que espetáculo maravilhoso, meu bom Deus!

Nessas ocasiões, uma multidão se materializava do nada, pois isto consistia numa das poucas coisas possíveis de quebrar o encantamento que parecia enclausurar as pessoas, na sua redoma particular - e isto era motivo de muita alegria!

Certo dia surgiu um estranho boato na cidade: um cargueiro grego estava a caminho. Ao ouvir aquilo, não quis acreditar. Chegaria dali a dois dias, no dia 13 de agosto.

A gaivota da ansiedade que pairava no ar nos deixava a todos inquietos. Eu mesmo não consegui conciliar o sono direito durante duas noites seguidas. E olha que minha concentração causava inveja a muita gente, pois conseguia a proeza de dormir até na Escola quando a aula não me interessava. 

E não é preciso dizer que o barulho ensurdecedor que os meus camaradas faziam, ressuscitaria Lázaro, sem qualquer esforço. Felizmente a nossa professora fora abençoada por Deus: ela possuía um grave problema de audição e praticamente nada escutava. Um tiro de canhão, com certeza, não lhe causaria dano algum.

Finalmente, a data tão esperada chegou. Fiz questão, pela manhã, de tomar um banho demorado, coisa que, aliás, assustou minha mãe. 

Perguntou-me ela o que estava acontecendo. Educadamente, fingi não ter percebido a insinuação ali contida. Coloquei a melhor roupa e pus-me à janela a esperar. Passei o dia inteiro a postos - e nada!

Decepcionado, já perdera completamente as esperanças de ver o papa milhas alienígena. 

À noitinha, uma notícia trágica varreu como um furacão os cantos mais remotos da cidade, chegando, também, aos meus imberbes ouvidos: o cargueiro sofrera um grave acidente. 

A caldeira havia explodido e isso vitimara alguns marinheiros e fizera dezenas de feridos.

A um piquetômetro lá de casa morava o Sr. Fernando Cela, dono de um Banco, homem culto, inteligente, que era poliglota. Nesse fatídico dia, vieram buscá-lo para que ele fosse a ponte de ligação entre nós e os gregos, levando-o de lancha até o local do sinistro.

Aviões insistentemente começaram a invadir o nosso espaço aéreo, levando os feridos de maior gravidade para a capital. De lá, seriam repatriados.

Passaram-se muitas luas. O gigante de aço fora restaurado, parcialmente, por uma equipe de socorro especial vinda de Fortaleza. Partiu tal como chegara: de forma surpreendente.

Fiquei triste durante muito tempo! O meu coração só se alegrou novamente quando, num belo dia, um enorme navio, com uma estranha bandeira, irrompeu no horizonte.

Era o Panathinaikos!

*Professor e Escritor Camocinense