sábado, 10 de maio de 2025

CORUJAS E CABORÉS

Por Avelar Santos*

Nos idos do século passado, quando o pesado gibão de couro escuro da noite finalmente vestia Camocim inteira, a cidade abruptamente tornava-se fantasmagórica – e as luzes de mil lamparinas, que bruxuleavam, indefesas, ao sopro forte do vento marinho, nas casas mais simples de outrora, tentavam, em vão, afugentar o breu que insidiosamente penetrava em tudo, como névoa densa e opressora a cobrir indistintamente pessoas e coisas.

Nessas horas mais silenciosas, as corujas e os rasga-mortalhas, que habitavam, sem pagar aluguel, o andar de cima da Estação, e também se acomodavam solenemente na torre da Igreja Matriz de Bom Jesus dos Navegantes, saíam mansamente de suas tocas, em pequenos bandos, voejando rasantes sobre os telhados das residências, a fim de garantirem um lauto jantar, à base de pequenos roedores, emitindo, aqui e ali, pios estridentes, que os mais supersticiosos, ao ouvirem aquele som, característico desses pacatos seres noturnos, faziam logo o sinal da cruz e exclamavam soturnamente um “eu te desconjuro”, recitando, em seguida, às pressas, breves jaculatórias e orações ao Altíssimo, suplicando-lhe que, pelo preciosíssimo sangue derramado por seu Filho amado, no Calvário, fossem livrados de todos os perigos, e, de todo mal, principalmente da morte repentina, pois acreditavam ingenuamente nos “poderes sobrenaturais” de tais inofensivas e utilíssimas criaturas de Deus, como se elas, pobrezinhas, fossem arautos de supostos desígnios malignos.

Certa feita, como de costume, à noitinha, papai nos levara, a nós, pequerruchos, para visitarmos o vovô Antônio dos Santos e vovó Guida, que moravam no coração da urbe, na Rua 24 de Maio. 

Nessas oportunidades, éramos recebidos, alegremente, por eles, no aconchego singelo da casa velha, como gostavam de dizer, muito embora tivessem, ao lado, uma residência nova e confortável. 

Ali, não sei bem por que, sempre reinava uma inquietante penumbra, cortada talvez ao meio pela fraca luminescência proveniente da lâmpada de um poste plantado nas imediações da antiga e barulhenta Usina de Força. 

Velhos tucuns, armados por toda sala, nos convidavam, gentilmente, logo ao chegarmos, para um imediato e merecido repouso – algo que, diga-se de passagem, nunca nos passou pela cabeça de deixarmos prontamente de atendê-los, pois, caso contrário, supúnhamos, ficariam tristes por uma dezena de anos. Assim, cada um se refestelava, neles, o melhor que podia - e a prosa começava a riscar o pensamento.

Naquela vez, contudo, antes que a ordem do dia fosse devida e formalmente anunciada, pelos anfitriões, para posterior e efetiva deliberação comunitária, um estranho fragor foi ouvido, ao longe, inicialmente, e, depois, aproximando-se rapidamente, como grupos de cavaleiros em furiosa debandada. 

Pasmos de medo, descobrimos que uma robusta esquadrilha dos Anunciadores do Apocalipse voava tranquilamente sobre o quarteirão inteiro, fazendo uma traquinagem infernal, parecendo querer descambar para a Rua do Egito.

Por via das dúvidas, mesmo sem saber ao certo o porquê, sem que ninguém percebesse, vi-me fazendo uma brevíssima e franciscana súplica aos Céus, clamando, ao Senhor, piedade - por mim e por todos os familiares que se encontravam sob aquele abençoado teto.

Pode parecer até coincidência, mas o fato é que, após este alado e significativo incidente, as oitivas daquela noite perderam totalmente o encanto que lhes era usualmente peculiar. Parcas conversas, jogadas a esmo pelo ar, foram semeadas, pelos circunstantes, sendo que a maior parte delas infelizmente caiu em solo pedregoso e não brotou como deveria.

O ambiente risonho de que desfrutávamos, até então, de repente tornara-se fechado. Nada fazia muito sentido. Por isso, uma a uma as vozes emudeceram. Daí a pouco, o silêncio reinava absoluto, enquanto um oceano de perguntas sem respostas enchia à borda a minha mente.

Impacientes, apressando o passo, ruminando pensamentos tenebrosos e agoniados, dando corda mais que suficiente à imaginação, voltamos, naquela noite sombria, mais cedo para casa.

*Professor e Escritor Camocinense