sábado, 28 de junho de 2025

O ZELADOR DO 25

Por Avelar Santos*

Dizem que a amizade, velo de ouro magnífico que enriquece alguns humanos abençoados pelo destino, pode ter origens diversas, como, por exemplo, o meio em que as pessoas convivem, amigos em comum, mas também ela pode surgir, por acaso, como luz a aclarar a densa escuridão, seja numa conversa trivial ou num acontecimento fortuito.

Detalhista e caprichosa, ela não precisa acontecer com indivíduos exatamente iguais, com os mesmos gostos, desejos e vontades, sendo, em inúmeros casos, a diferença existente entre eles o que, de forma paradoxal, serve como elemento estabilizador de aproximação, de união.

Quando conheci o Nenzinho, anos atrás, no Alba Maria, onde ele trabalhava como jardineiro, desde o ´primeiro momento eu percebi que se tratava de uma pessoa de fino trato, prosista de mão cheia, de bom humor nato, que carregava, sempre, um sorriso no rosto, mesmo diante das agruras da vida, que, aqui e ali, vinham até ele, pobrezinho, como as águas turbilhonantes da maré enchente, que lhe molhavam todo, não somente os pés, por vezes respingando até na alma, mas que, devido à sua simplicidade, à fé inabalável no Arquiteto do Universo, aguardava, com serenidade, o mar refluir, os ventos se acalmarem e a tempestade, por fim, arrefecer, de vez, dando lugar à bonança dos dias.

Morador da Rua Edilson Veras, antiga Independência, no seu final, no sentido leste-oeste, perto do cemitério, almejando ofertar à família um pouco mais de conforto, nas suas folgas do serviço, antes do raiar da Alva, lá estava ele cuidando de jazigos, enfeitando-os com belas e perfumadas flores, com paciência de Jó e coragem de Dante, que, guiado por Virgílio, por caminhos ermos, na Divina Comédia, poema épico escrito por Alighieri, dividido em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso, obra prima da literatura universal, narra uma viagem que ele fizera ao mundo dos mortos, na companhia do poeta romano, vindo a explorar os diferentes reinos da vida após a morte, refletindo, portanto, temas que dialogam com a moralidade, justiça e a busca pela salvação.

Certa feita, minutos depois de bater o ponto de saída, ao toque da trombeta da ensurdecedora sirene, encontrei o Nenzinho, debaixo de frondosas mangueiras, que guardavam, junto com os passarinhos, minha velha bike, a conversar animadamente com o porteiro, que dava boas gargalhadas daquilo tudo que ouvia, chegando mesmo, por vezes, a se engasgar de tanto rir, enquanto o mestre da alegria limpava, com agilidade de um menino travesso, umas vistosas touceiras de banananeiras, algumas com o coração e cachos carregados bem à vista.

Aproximei-me deles, já antevendo as estórias engraçadas que o Nenzinho estava a contar, não imaginando eu que, naquele momento, ele discorria sobre uma “causo” de assombração que acontecera, recentemente, com ele, logo ao chegar ao campo santo, usando as mãos calejadas, que riscavam os ares, como o maestro utiliza as suas na condução da orquestra, talvez para dar maior verniz ao que ele dizia.

Naquela data fatídica, era véspera de finados, o zelador saíra de casa, às 04:30h da matina, ainda escuro, sem tomar sequer o franciscano desjejum usual, café com tapioca, porque uma conhecida sua pedira a ele, no dia anterior, que limpasse uma cova de um homem que cometera suicídio, há tempos, cuja família fora embora da cidade, por motivos incertos, não havendo, por conseguinte, nenhum parente próximo que pudesse, enfim, se incumbir desta missão, restando a ela, por ter sido vizinha, amiga do falecido, fazer anualmente esta boa ação.

O Nenzinho disse-nos, com aquela sua voz mansa, com gestual tranquilo, que nunca tivera qualquer contratempo durante todo o período em que cuidara dos túmulos, porque, segundo ele, os defuntos não podem fazer mal a ninguém, mas que, naquele dia, logo ao entrar na necrópole, sentiu como se alguém o estivesse esperando à porta da entrada, e que uma suadeira forte, provocada pelo fantasma do medo, tomou conta dele, muito embora fizesse frio àquela hora da madrugada.

Tentando não se abalar com aquilo, que se seguiria, porquanto certamente era fruto de sua imaginação, ele ouviu distintamente um longo assobio que, momentaneamente, fê-lo pensar em voltar para o aconchego do lar, mas, como homem de palavra e corajoso, que não acreditava em “visagens”, mesmo incomodado, sentindo as pernas pesadas, continuou a andar, dirigindo-se à sepultura que teria que limpar, em derredor, o que faria, pensou consigo mesmo, sem demora.

Nisso, já bem próximo do local da tumba, ele vê um vulto vestido de branco, esgueirando-se por detrás de uma cripta, ao largo, o que o fez gelar de pavor, não conseguindo, daí por diante, dar mais um passo.

Ato contínuo, buscando encontrar forças na oração, ele fez uma prece silenciosa ao Senhor, a fim de que ELE, na sua infinita misericórdia, acolhesse, no seu Reino Celeste, todas aquelas criaturas, que, agora, encontravam-se, ali, em repouso perpétuo, mas que, no passado, também trabalharam, sonharam, sorriram, tiveram ideais, cujo legado, de cada um deles, no plano terrestre, só o Paizinho do Céu conhecia.

E o Nenzinho disse-nos que, depois, uma paz imensa foi se apoderando dele, fazendo com que ele não fraquejasse mais na sua labuta.

Terminado o trabalho de limpeza da campa, que fez, naquele longínquo dia, com redobrado zelo, com o sol já andando, feliz, na abóboda do firmamento, um pouco mais aliviado de todas aquelas sensações ruins que tivera, ele, lentamente, com a enxada no ombro, voltou para casa.

Na manhã seguinte, cedinho, com os galos das redondezas ainda afinando o canto, em coro, para saudarem festivamente um novo dia, vemos o Nenzinho, a passo cadenciado, dirigindo-se ao Cemitério São José, com a saudade do irmão que partira para as estrelas a boiar no seus olhos cansados, levando uma coroa de flores para homenageá-lo.

*Professor e Escritor Camocinense