sábado, 23 de agosto de 2025

RUA DO PAPOCO

Por Avelar Santos* 

Nossa empolgante viagem tem o seu início em meados do século XX numa cidadezinha mui adorável da costa oeste da Terra da Luz. 

Portanto, vamos embarcar, alegremente, no navio do tempo, que certamente nos levará, sem sustos, I hope so, aos confins dessa grande aventura.

Por aquela época, Camocim, ainda menina-moça, além de suas belas praias, cuja poesia se derramava na alma de sua gente pacata, mormente nas noites de lua cheia quando fachos de luz riscavam de prata o mar de esmeralda, trazendo, assim, um pouco do esplendor do céu para bem perto de nós, havia algo mágico, na vida citadina, que a diferenciava de suas irmãs das redondezas, porquanto o porto e a estação ferroviária encontravam-se em plena atividade girando a roda da economia local, azeitada naquele vai e vem constante de pessoas e no leva e traz de cargas as mais diversas; daqui, saía, principalmente, o sal e a cera de carnaúba, e, de além-mar, vinha o luxo que revestia a casa daqueles mais abastados, sobressaindo-se produtos industrializados oriundos de países europeus, que consistiam desde aparatos nababescos para o lar, com a porcelana destacando-se como joia rara, passando, também, por vinho do Porto, tecidos finos, que atendia o gosto refinado das damas da sociedade de antanho, além de caixas metalizadas de chocolate de sabor dos deuses.

Fincado como sentinela avançada, na orla, estampando a face horrenda da injustiça social, que grassava impiedosamente sem que ninguém ousasse parar, o baixo meretrício, pobrezinho, serpenteava, aqui e ali, rastejando pela subida íngreme da ladeira do logradouro, no sentido leste-oeste, acomodado em casebres, que estendiam, suplicantes, as mãozinhas aos céus, através dos tetos de palha, desnudados pelo vento, como se clamassem por proteção divina, cuja clientela aumentava exponencialmente quando vistosos brigues, bem como grandes vapores, vindos de terras distantes, estivessem ainda atracados no cais.

Talvez pela vida miserável que muitos habitantes daquela rua levavam, acrescido de uma pitada de falta de educação, de bons modos, via-se comumente acontecer uma discussão mais acalorada, entre vizinhos, por qualquer dá cá aquela palha, sendo que, em certos casos, isto resvalava, infelizmente, para brigas feias, que atraía os circunstantes desocupados, feito abelha ao mel, que se contentavam em assistir, sabe-se lá o porquê, aquele espetáculo dantesco, movido pela raiva humana, açodado por xingamentos, cujo chicote trocava de mãos constantemente, nessas horas, das quais, creio eu, é melhor silenciar.

Naqueles dias que se perderam na bruma espessa dos anos, às vésperas de uma eleição, com a cidade fervilhando de agitação e ansiedade, com os munícipes defendendo com unhas e dentes o seu candidato a prefeito, ocorreu um “causo” que se tornou emblemático, naquela artéria urbana, quando, num simpático cabaré de meia pataca, escondido timidamente de olhares intrusos pelo mato alto que crescia à volta, ao final de uma farra daquelas dignas de Calígula, dois amigos, ao rumarem para casa, ambos mal conseguindo ficar de pé, resolveram apostar certa quantia em cruzeiros cada um escolhendo qual dos partidos (Cara Preta ou Fundo Mole) seria o grande vencedor do pleito.

E assim eles o fizeram!

Por conta da precária iluminação pública daquele pedaço do quarteirâo papoquense, uma Rural abarrotada de utensílios diversos caprichosamente se perdeu da vista deles, escapulindo, como vira-lata, de forma cautelosa, sem fazer alarde, pelas pedras toscas do calçamento (que ainda estava em obras), dirigindo-se, sem pressa, a algumas residências a fim de realizar entregas, com o motorista e o seu assistente, sabendo que andavam no fio da navalha da contramão da lei, com os nervos à flor da pele, discutindo sem parar.

No dia seguinte, boca da noite, encerrada a votação, quando tudo parecia calmo, os ânimos dos moradores da parte alta daquela ruazinha voltaram a se inflamar devido, quem diria, à visita antecipada de Papai Noel, disfarçada de doação de bons samaritanos (telha, tijolo, cimento), cuja família mais agraciada fora a da dona do pobre recinto da luz vermelha, que, por razões óbvias, não era benquista por muita pessoas.

Quando esta notícia foi propalada aos quatro ventos, correu tão ligeiro quanto rastilho de pólvora pegando fogo, gerando um grande escarcéu.

E aconteceu também, caríssimos, que o perdedor daquela aposta sobre quem seria o novo gestor municipal, feita com um companheiro de copo, quando voltavam da orgia, escafedeu-se, tomou sumiço, ninguém sabia mais do seu paradeiro, até que um belo dia, pensando que o esquecimento se abatera como mal sobre todos, para desgraça sua caiu na suprema burrice de ir tomar uns tragos no boteco do Zoião.

Logo ao entrar deu de cara com o seu amigo, que, macambúzio, mas bem lembrado, presenteou-lhe sem demora com uns bofetes, atiçando a sua fúria louca, enquanto batia sem dó no pobre homem, com um corolário de cabeludos palavrões que reverberaram por toda vizinhança.

Quando, enfim, a urbanidade, através da especulação imobiliária, chegou àquela rua, com os casarões da burguesia sendo construídos nos terrenos em volta, que, num passe de mágica, de míseros tostões passaram a valer alguns milhões, por ali restava quase nada da sua fleuma acirrada de outrora, cujas estórias ainda são contadas, hoje, pelos mais velhos, aos seus filhos, talvez para perpetuarem o passado.

E a Rua do Papoco, muito embora habitada, também, por tranquilos moradores, pescadores, estivadores, comerciantes, que, mesmo sem quaisquer resquícios de instrução formal, sabiam até onde ia o direito do outro, não avançando a linha divisória da intromissão em coisas que não lhes diziam respeito, teve o desprazer de ficar famosíssima, na urbe inteira, por esta insensata comissão de frente dos seus valentões.

*Professor e Escritor Camocinense