sábado, 25 de outubro de 2025

HOJE NÃO TEM ESPETÁCULO

Por José Maria Trévia 
(Escritor Camocinense)

Vivíamos o final da década de 50. As cidades interioranas eram, uma vez por outra, visitadas pelos circos mambembes, que cumpriam o seu destino mágico de oferecer diversão aos povos dos mais inóspitos rincões. 

Em uma tarde de um dia de verão, na minha pequena Camocim, mais uma vez a notícia corre, de boca-em-boca, espalhando alegria e criando expectativas em torno do que seriam as atrações e quais as novidades que o elenco apresentaria. 

A Praça da Matriz apresentava a movimentação de curiosos, observando os primeiros trabalhos de montagem daquilo que seria, durante as duas ou três semanas seguintes, a melhor opção de divertimento para os adultos e para a meninada.

As escavações de covas se sucediam, e aqueles homens fortes pareciam saber de cor o lugar exato de cada uma daquelas estacas ou tábuas e de cada metro de corda ou de arame. E cada transeunte que atravessava o descampado da praça levava mais uma informação, que se ia agregando às outras pelos botecos ou pelas esquinas. 

O bisbilhoteiro já informara o nome do circo, argumentando que vira a sua placa, apoiada em caixotes e por trás de enormes fardos de lona. Divulgara, ainda, que o circo tinha, apenas, um mastro principal, sendo isto um referencial importante, para se ter uma ideia de suas dimensões e importância.

Dois dias depois, aquele pequeno mundo de cordas e de lonas tomara a sua forma arredondada e a flâmula, tremulando no alto de seu mastro central, fazia-nos lembrar a imponência de um castelo medieval, embora não passasse de uma frágil estrutura de lonas ou tecidos grosseiros, costurados com cordas de sisal.

Chegara, finalmente, o grande dia da estréia. O palhaço, com suas grandes pernas-de-pau, anunciava nas ruas, as atrações imperdíveis do grande espetáculo daquela noite. A meninada, cantando os refrões, ensinados, e respondendo às rimas ensaiadas, seguia de perto o palhaço.

- O palhaço, o que é ?

E a meninada respondia:

- É ladrão de mulher !

- Hoje tem espetáculo ?

- Tem sim, senhor !

- É às oito horas da noite ?

- É, sim senhor !

- O que é que a velha tem ?

- Carrapato no sedém !

E a seqüência parecia não ter fim:

- Olha o toco no caminho !

- Arriba o pé !

- Foi por causa deste toco...

- Que eu quebrei meu pé.

- Dona Dadá, Dona Didi...

- Seu marido entrou aí...

- Ele tem que sair, ele tem que sair.

- E arrocha negrada !

E a molecada vaiava:

- Ieeeeeeê !

O grupo descia a rua, fazendo, de improviso, o seu itinerário. De vez em quando, o palhaço dava uma parada e, do alto de suas longas pernas, contava os meninos, todos com uma marca de tinta no pulso, o que lhes dava direito a um lugar no poleiro, para assistir ao espetáculo daquela noite. 

E a contagem, em momentos incertos, impedia que o menino, com o braço marcado de tinta, abandonasse o cortejo e, à noite, exigisse sua entrada sem ter cumprido a sua tarefa de acompanhar o palhaço durante todo o percurso. Havia garotos que, aproveitando aquela forma de compensar a entrada franqueada, não perdiam um só espetáculo, durante toda aquela temporada em que o circo permanecia armado.

Algumas companhias, pois assim se autodenominavam, estampavam a sua pobreza na infinidade de remendos em sua empanada desgastada. Era o contraste da arte, envolvida em trapos, obstruindo o olhar dos que não pagaram para contemplar a sua nudez.

Mas, conforme bradavam os anunciantes, “o espetáculo não pode parar”. Os sucessos repetem-se e a glória efêmera explode a cada apresentação. A platéia, maravilhada, aplaude ao final de mais uma grande noitada. E, nessa sucessão, os dias transcorrem rapidamente e chega, então, o fim da temporada e a hora da despedida.

Os dias de festa e espetáculo marcaram sua passagem, com muito brilho e muitas cores, o que nos faziam imaginar, enquanto crianças, quão bom e divertido era o mundo do circo, vivendo como estrelas, usando roupas lindas e recebendo aplausos. Mais uma vez aquele empório de risos e fantasias parte em busca de novas platéias em outras freguesias.

Agora, o descampado da praça voltara à sua calma. O vento soprava e fazia rodopiar os papéis e sacos vazios, deixados para trás, fustigando um sentimento de saudade. Do circo, restaram, apenas, as lembranças e algumas covas, que ainda permaneciam abertas, demarcando o que fora, talvez, o palco ou o picadeiro.

Hoje em dia, embora sejam encontrados alguns circos mambembes, resistindo aos fatores que insistem em aniquilá-los, devemos reconhecer que o circo está morrendo. Sitiado pela evolução do mundo e mudança dos costumes, o picadeiro está perdendo o seu espaço e o trapézio parece arrefecer diante do fascínio de outros espetáculos. 

O malabarista e o equilibrista já se apresentam dispersos pelos cruzamentos da vida e das avenidas, enquanto o “comedor de fogo”, literalmente, faz o seu trabalho para sobreviver. O palhaço, de características genuinamente circenses, que sempre foi, verdadeiramente, a alma do circo, caminha para a extinção. 

A opção pela vida nômade, para mostrar a arte, mesmo que lhe custasse o preço alto de muitas renúncias, encontra, atualmente, um número cada vez menor de adeptos. 

É que mundo do picadeiro, visto dos camarotes e poleiros das ruas, já não recebe o mesmo calor de tantos aplausos e “o pano caiu” diante do final da última comédia. E, por tudo isto, anunciamos, melancolicamente, que hoje não tem espetáculo.

Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado", de José Maria Trévia.