sábado, 11 de outubro de 2025

O HOMEM QUE FALAVA RAPARIGUIM

Por Avelar Santos* 

Nossa aventura começa, nos albores deste século, em Portugal, berço esplêndido de grandes navegadores, escritores e poetas, ouvindo, nostálgicos, o melódico cantar do Galo de Barcelos, que a lenda diz um dia ter feito um juiz dar o veredicto de inocente a um homem condenado injustamente, num vilarejo plantado no alto uma escarpa, cujo olhar apaixonado se perde na vastidão das águas do Rio Douro, que desliza, majestoso, lá embaixo, no vale, antes de mergulhar no Grande Oceano.

Por aquele tempo, o torrão natal de Pinto Martins principiava a alçar voo, no turismo cabeça chata, devido principalmente às suas belezas naturais, ancorada na hospitalidade de sua gente, além de possuir uma boa rede hoteleira, fazendo com que, periodicamente, a cidade ganhasse novos moradores, vindos de além-mar, muitos deles de países nórdicos, que fugiam de invernos rigorosos, passando, por aqui, alguns dias que certamente jamais seriam por eles esquecidos, levando consigo, ao partirem, as melhores recordações de nossa vida citadina, cheia de poesia, de encanto, presente no cotidiano simples dos descendentes dos valorosos tremembés, o que permitia, com facilidade, que a roda da economia, azeitada por esse fluxo turístico sazonal, girasse com vigor.

É nesse contexto de uma cidade ainda bucólica, que distendia suas asas, gradualmente, projetando o seu pensamento no futuro, que vamos encontrar, bem tranquilo, na orla, contemplando o pôr do sol, um lusitano de meia idade, de rosto oblongo, cinzelado por um fino bigode, de olhar penetrante, mas sem nenhum brilho, que denotava inteligência nada privilegiada, uma pessoa comum no meio de tantas outras em volta, que chegara na terrinha recentemente, estampando na face um sorriso que parecia dizer a quem o visse, por ali, que ele estava bastante satisfeito com a difícil escolha que fizera, sabe Deus o porquê, de deixar, por uns tempos, as terras portuguesas, vindo para cá, o que, de certa forma, causou espanto em muitos patrícios e também nos meus conterrâneos, sem que, no entanto, pelo menos a princípio, por conta talvez de sua discrição, ninguém tivesse ousado perguntar-lhe a razão que o havia levado a uma mudança de ares desta magnitude.

Acostumado a ouvir os lamentos do fado, que incendeia de poesia a alma dos portugueses, dedilhado na melancolia de um violão, levando-os a viajar nas asas do tempo, tangendo o passado repleto de glórias, ele se viu, no início, em Camocim, um peixe fora d’água, não submergindo, como deveria acontecer, no pote de nossa cultura, mantendo-se distante de tudo, sentindo, por isto mesmo, uma saudade danada daquilo que vivera, em sua aldeia, mormente dos bons momentos no regaço aconchegante da família, à qual, na hora da despedida, prometera regressar ao lar, o quanto antes, sem contudo jamais imaginar que quebraria involuntariamente o vaso daquele pacto firmado, por quase duas décadas, por circunstâncias muito estranhas que se sucederam alheias inteiramente à sua vontade.

Naquela época longínqua, que se esfumaçou tão rapidamente, esvaindo-se por entre nossos dedos, cujos belos dias se perderam, pobrezinhos, na névoa densa dos anos, havia, em Camocim, uma gama de oportunidades à espera daqueles que tivessem uma visão empresarial aguçada, que se permitissem antever onde melhor colocar à prova os seus talentos, posto que a urbe fervilhava de possibilidades mil, em um mundo novo que começava a ser delineado com as cores vivas do desenvolvimento urbano, que estava prestes a transformar o nosso modo de viver, fazendo-nos ver o quadro de mudança que se avizinhava.

E aconteceu que, passados alguns meses, o gajo, com a carteira cheia de euros que trouxera consigo, aclimatando-se melhor, por aqui, conhecendo mais pessoas, resolveu mergulhar no ramo do entretenimento, mais precisamente abrindo um restaurante que ofertava, aos clientes, na maioria jovens, música ao vivo, nos finais de semana, o que veio realmente a bombar por certo período.

Para isto, alugou um prédio, no centro, onde outrora funcionara o Cine João Veras, de saudosa memória, fazendo, em seguida, uma reforma espetacular no recinto, digna mesma de nota, que, cá para nós, chamou a atenção de todos pelo gasto excessivo num local do qual ele não era dono.

Por conta do pub estar sempre com lotação máxima, semana após semana, com o dinheiro correndo solto, entrando a rodo, como se diz, informalmente, nos seus bolsos, ele, pensando que isto duraria para sempre, começou a sair com as glamourosas damas da noite, madrugada afora, que, tornaram-se nobres, de repente, gastando, com elas, o vil metal sem se preocupar um tantinho assim com o amanhã.

E aquilo foi a porta aberta por onde entrou o feio fantasma de sua ruína!

Até então ele navegara com sua caravela, com ousadia extrema, sob a luz benfazeja das estrelas iluminando o caminho do Cabo da Boa Esperança a seguir, como fizera, no passado, o grande Vasco da Gama ao descobrir a rota marítima para as Índias Orientais, fato histórico que o colocou no panteão dos heróis nacionais, incrustrados na memória do povo lusitano, mas que, agora, por desígnio dos deuses, via-se lançado, de chofre, no Mar de Sargaços, onde não havia vento para enfunar a vela de sua embarcação.

Um ano depois, a fonte da bonança que jorrrara sem parar veio a secar e eis que ele se viu atolado até o pescoço na areia movediça de apuros financeiros que fizeram-no, infelizmente, fechar o seu negócio.

Assim, como num passe de mágica, o champanhe, os bons vinhos, os risos calorosos das beldades que o acompanharam em diversas e memoráveis noitadas simplesmente sumiram. E quando ele, enfim, se apercebeu, estava completamente só.

E uma dor profunda varreu seu coração quando viu, para espanto seu, que as mulheres e os alegres convivas dos animados saraus de antigamente, que varavam as doces madrugadas, que tanto incensaram sua vaidade louca, esvaíram-se na poeira fina da estrada esburacada da vida, encerrando, assim, de forma melancólica, o ciclo venturoso que o destino lhe presenteara tão bem – e que ele imaginara jamais pudesse chegar ao fim.

Na forja dos anos vindouros, quando a pobreza, enfim, bateu à sua porta, entrou e fez definitiva morada, como era penoso ver aquele homem maltrapilho, de feições abatidas, olhar cansado, vagando, sozinho, pelos becos, como se quisesse esconder-se de si mesmo, valendo-se, para poder sobreviver, da compaixão de alguns samaritanos pertencentes à parte mediana da sociedade camocinense que ajudavam-no nas suas necessidades básicas, no que ele balbuciava, em troca desses gestos de solidariedade, sua gratidão.

Por um momento, eu peço a vocês, deixem-me sair dos trilhos desse “causo” para apresentar-lhes um conhecido conto folclórico alemão que narra um acontecimento deveras incomum ocorrido numa cidadezinha da Terra de Goethe, que estava sofrendo com uma praga terrível de ratos. Certo dia chega ao burgo um homem que se diz ser um exímio "caçador de roedores" afirmando ter a solução para aquele problema. 

Ao ouvirem aquilo, prometeram-lhe a recompensa de um florim pela cabeça de cada rato. Contente, o homenzinho aceitou o acordo, pegou uma flauta e hipnotizou os ratos, afogando-os no Rio Weser. Apesar do sucesso almejado, o povo do lugar recusou-se a pagá-lo, alegando, para isto, que ele não apresentara as “cabeças”. 

Desiludido, o forasteiro foi embora, mas voltou, tempos depois, e, enquanto os habitantes encontravam-se na igreja, tocou de novo sua flauta, atraindo desta vez as crianças de Hamelin que o seguiram, para fora da cidade, onde foram enfeitiçadas e trancadas em uma caverna. Lá, restaram somente os opulentos habitantes, com seus celeiros cheios, protegidos por muralhas, recobertos por um manto de silêncio e tristeza.

Diferentemente do Flautista de Hamelin, o portuga não precisou tocar nenhum instrumento para se ver livre das ratazanas que o acompanharam, enquanto as moedas de ouro tilintavam na sua bolsa, abandonando-o, sem qualquer remorso, ao divisarem, no horizonte, os primeiros sinais claros da tempestade que afundaria de vez sua pobre nau.

Senhor Deus dos Desgraçados! Tende compaixão, Paizinho, de tantos sofredores que caminham a esmo, na escuridão, por tortuosas veredas. Abrigai cada um de nós debaixo de vossas asas protetoras, mesmo que, na nossa pequenez humana, não entendamos, por vezes, que as cruzes que carregamos fazem parte do aprendizado nosso neste plano.

*Professor e Escritor Camocinense