“ Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, diz sabiamente o Eclesiastes.
Segundo a psicologia, a vaidade expressa a valorização exagerada da aparência, das conquistas ou das qualidades pessoais, podendo se manifestar no modo de se vestir, falar ou de se comportar socialmente.
Muito embora em alguns contextos o cuidado com a imagem possa ser algo perfeitamente saudável, a vaidade passa a ter uma conotação muito negativa quando ela se transforma em exibicionismo ou soberba.
Conta-se que, há muitos anos atrás, numa encantadora cidadezinha, havia uma simpática mulher, comedida no falar, mas de gestos largos, fartos, de boa índole, oriunda de uma família abastada, que sempre desfrutara de certos privilégios da nobreza que as pessoas comuns, pobrezinhas, jamais poderiam imaginar possui-los, mesmo que por pouquíssimo tempo, que gostava bastante do glamour que o luxo pode proporcionar às gentis damas, sentindo-se, portanto, compelida, desde a distante juventude, em adquirir, cada vez mais, sem se cansar, coisas finas que satisfizessem o seu gosto apurado, tornando-a, assim, bastante conhecida pela sociedade de antanho, que respirava civilidade.
Por essa época, que não existe mais nada, sequer a ampulheta enferrujada que um dia contara fielmente as horas, que fora estilhaçada com a chegada da modernidade, restando dela somente algumas lembranças, todos se conheciam amiúde na pequenina urbe, tanto que muitas pessoas, ao invés de elas serem chamadas por seus nomes de batismo, eram nominada por apelidos, alguns deles bem ultrajantes.
Ademais, nesse burgo perdido no fim do mundo de meu Deus, sabia-se exatamente o que cada morador fazia ou deixava de fazer, como levava a vida, quais as suas preferências pessoais, safadezas, inclusive das puladas ousadas de cerca, que, uma vez escancarada a porteira dos acontecimentos de alcova, teciam novelos de medo nos libertinos de outrora, pegos no flagra extraconjugal, por que eles tinham a certeza que uma vez expostos os seus “causos” amorosos aos olhos daquela piedosa comunidade, a tinta da vergonha poderia macular não só a pretensa “honorabilidade” dos ditos cujos, criada, muitas vezes, de maneira artificial, com esforço de Hércules, por parte dos mesmos, no intuito de ludibriarem os desavisados, que não eram poucos, salpicando também nos paletós de linho branco dos aristocratas, de cortes perfeitos, que luziam mais que o sol, algo tão espetacular que deixaria qualquer alfaiate dos bons, de além-mar, de queixo caído diante de tamanha performance dos avocetas tupiniquins no uso da tesoura e da fita métrica, além, evidentemente, da escolha do melhor tecido para a produção daquelas vestimentas dignas mesmo de barões, duques e reis.
Nesse diapasão temporal, contavam os mais velhos, havia, inclusive, dentre os habitantes daquele lugar, certos indivíduos metidos a espertos que diziam ler até os pensamentos guardados a sete chaves, que, logicamente, aqueles incautos, que eram a maioria, acreditavam piamente nisso, indo procurar às escondidas, mormente em horas incertas da calada da noite, alguma macumbeira que pudesse revelar a eles as cartas na mesa do futuro, como se isto fosse possível, posto que, como falava um adágio popular “quem tem besta não compra cavalo”.
Mas, deixemos de lado essas tergiversações, voltando a encontrar o fio da meada dessa prosaica crônica, certamente não aquele novelo feito de ouro puro que Ariadne, filha do rei de Creta, Minos, deu a Teseu, filho do rei de Atenas, Egeu, para que ele o desfizesse, à medida que avançava no labirinto em que o Minotauro se encontrava, para seguir sua trilha de volta a fim de que ele pudesse sair, enfim, daquele local.
Acostumada a chegar, no seu carro, buzinando insistentemente às portas das lojas da pacata cidadezinha até ser notada e atendida por uma vendedora, que, reconhecendo, de longe, aquela senhora da fina flor citadina, dirigia-se prontamente a ela, que, como uma rainha, permanecia dentro do veículo, estacionado de qualquer jeito no meio da rua, talvez porque não quisesse torrar ao sol a sua pele delicada, informando à atendente, mas sem encará-la de frente, continuando a olhar a paisagem em volta, com uma voz cadenciada, musical, o que ela queria comprar, indicando os detalhes, além de marcar a hora que gostaria de receber na comodidade de sua casa o produto adquirido.
E assim como o barco de Chronos jamais se cansa de levar as almas aflitas para o outro lado do rio, onde o destino final espera por elas, sem pressa, aquela distinta senhora também nunca se cansava de torrar, sem se aperceber quanto, a paciência de lojistas e atendentes.
Certa feita, porém, ao estacionar o seu automóvel defronte a uma movelaria, num bairro afastado do centro, cujo dono, além de possuir uma alcunha nada agradável, na verdade muito feia, também era conhecido de todos por seu mau humor, e, como de praxe, iniciar o seu buzinaço para que alguém fosse atendê-la, para azar da gentil dama, naquela hora, ele estava nos fundos do seu estabelecimento comercial às voltas em capar um suíno arisco que serviria de repasto à sua família nas comemorações do Ano Novo que se avizinhava a passos largos.
Ao ouvir aquela buzina intermitente que feria a paz do dia, interrompendo os seus afazeres, ele, ainda com a faca suja de sangue, na mão, com cara de poucos amigos, o que não era novidade alguma, saiu bufando do recinto para observar o motivo daquele alvoroço todo.
Quando a madame viu aquele homem iracundo indo ao seu encontro, parou imediatamente de acionar a buzina e, tomada de pavor, engatando logo uma segunda escafedeu-se dali o mais rápido que pôde.
Depois disto, talvez receosa de presenciar outra reação de fúria igual àquela que tivera, a mulher parou de perturbar o sossego alheio.
*Professor e Escritor Camocinense
