Por José Maria Trévia
(Escritor Camocinense)
Este local de feira, que desde a criação foi chamado de “Pedra”, hoje se apresenta bem diferente de suas características originais, quando ele era ocupado, predominantemente, por vendedores de pequenas quantidades de produtos do setor primário, expostos no piso de pedra e cimento, daí o nome que recebeu e persiste imutável há mais de cinquenta anos.
Bem antes de clarear o dia, o tacho de 50 litros já está fervendo no compartimento dos fundos da casa do Evandro do Chá, enquanto as bandejas de alumínio recebem para cozimento o inigualável cuscuz-de-arroz, acompanhamento insubstituível do nutritivo chá camocinense.
E ressalve-se que a maior parte do trabalho do preparo inicial já foi feita na véspera, a fim de que, antes das seis horas da manhã, a freguesia já comece a ser servida com o seu alimento matinal preferido.
A história do Chá de Burro teve início nos idos de 1935, com o senhor Manoel Barros Falcão, o nosso conhecido Manduca do Izídio, preparando este alimento, inicialmente parecido com o Mucunzá, e que foi sofrendo modificações no seu preparo e na escolha dos ingredientes, culminando com a sua receita única.
Existem acentuadas diferenças entre estes dois tipos de alimentos, gerando algumas comparações equivocadas, quando lhes são feitas referências de igualdade ou como se fossem a mesma coisa.
Quanto aos ingredientes predominantes, são, na verdade, semelhantes, tendo em vista serem produzidos basicamente de milho, leite de coco e temperados com canela em pó. Entretanto, o Chá de Burro tem lá os seus segredos e o privilégio de receber outros ingredientes em sua composição, os quais não são utilizados no Mucunzá, como é o caso do arroz triturado e a mistura de adequada dosagem de leite em pó, em substituição ao leite bovino in natura.
Percebe-se, ainda, que o Chá de Burro é de uma densidade bem menor ou, dito de outra forma, é acentuadamente mais fino, além de que o milho utilizado em seu preparo é mais triturado e o seu cozimento é mais completo. Finalmente, a consistência mais fina do Chá de Burro lhe concede a insuperável propriedade de ser o alimento mais apropriado para o consumo com a mistura do gostoso cuscuz-de-arroz.
Até o ano de 1958, o acompanhamento do Chá de Burro era, exclusivamente, o cuscuz-de-milho, quando, então, o Manduca do Izídio descobriu uma receita de um cuscuz feito de arroz, adaptando-a ao seu modo e ao gosto do povo, o que fez com que a referida receita inicial sofresse, também, algumas alterações, chegando aos dias de hoje com uma textura e sabor difíceis de serem igualados.
Desde a sua introdução, o cuscuz-de-arroz foi conquistando a preferência dos consumidores, e o seu consumo foi crescendo, em detrimento da procura do seu similar feito da massa do milho, até que, em meados da década de 1990, o acompanhamento do Chá de Burro passou a ser, exclusivamente, o cuscuz de arroz.
- O segredo do cuscuz de arroz está no “ponto”, e isto tem muito a ver com a escolha da sua matéria prima, que é o arroz, diz o Evandro Oliveira Galvão, o Evandro do Chá, sempre muito atencioso durante o seu trabalho na venda e no “bate papo” informal sobre os alimentos que evoluíram, adaptaram-se e “casaram-se”, fazendo hoje, orgulhosamente, parte da cultura do povo camocinense.
Nos seus primeiros tempos, o Chá de Burro se localizava dentro do Mercado Velho, onde foi vizinho, durante vários anos, da bodega do Dedé Paraense. Nesta época, chegou a abrir uma “filial”, locando uma mesa de venda no descampado da praça, antes da existência do mercadinho novo, ou abrigo, como chegou a ser denominado logo após a sua construção.
Coincidentemente, o atual ponto de venda do Chá de Burro, localizado na “Pedra”, ocupa exatamente o local da antiga “filial”, e está sob a direção do Enaldo Oliveira Galvão, neto do pioneiro, embora o seu pai, Evandro do Chá, ainda faça parte ativa da equipe de produção e venda do tão apreciado produto.
Em 1989, quando o Manduca do Izídio faleceu, já contados os seus bem vividos 77 anos, os seus filhos deram continuidade ao seu trabalho e mantiveram a tradição do produto, o qual se mantém como principal atividade de três gerações da família, e promete prolongar-se, ainda, por muitas outras gerações.
Um dos fatores, dentre os que contribuíram para o sucesso do Chá de Burro nos seus primórdios, além do seu sabor inconfundível e o valor nutritivo, foi o período oportuno de sua entrada no mercado, quando as padarias eram estabelecimentos escassos e o pão um produto menos disseminado, nas décadas de 1930 e 1940.
Vieram, assim, o Chá de Burro e o cuscuz de milho, conquistar a preferência de uma camada de consumidores que necessitavam de uma opção alimentar mais nutritiva, ou com mais sustança, como diriam os seus primeiros apreciadores e trabalhadores braçais.
Atualmente, nos fins de semana, a quantidade do Chá de Burro produzido é acrescida de cinquenta por cento com relação à produção dos dias rotineiros.
Entretanto, quando o período é de festa, a exemplo do carnaval e outros eventos que aumentam significativamente o número de consumidores, a cota da produção ofertada é, inevitavelmente, triplicada, acontecendo a mesma variação com o cuscuz-de-arroz, comprovando o alto nível de popularidade que esta iguaria alcançou.
Para os camocinenses, sobra-lhes, ainda, a satisfação de poder dizer que Camocim é a única cidade do mundo onde você encontra, na “Pedra”, qualquer que seja o dia do ano, uma tigela de Chá de Burro, com cuscuz-de-arroz.
Quanto à origem do nome dado ao famoso alimento, há fortes evidências de que o mesmo surgiu de brincadeiras e de apelidos que, aos poucos, lhe foram sendo imputados, objetivando caracterizá-lo como um alimento forte, feito para os desejosos de uma refeição relativamente rápida e suficientemente nutritiva, a ponto de deixá-los preparados para enfrentar o trabalho pesado.
Passou a ser visto pelos adeptos como um chá preparado para os peões brabos como um burro, valorizando jocosamente o seu poder nutridor. Taxaram-no de chá para burro, sendo, com o tempo, batizado pela voz do povo como Chá de Burro, e assim permaneceu através de décadas, até os dias atuais.
