Um sacerdote é uma pessoa dedicada ao trabalho com coisas sagradas, configurando-se, pois, como se fora uma ponte entre Deus e os homens.
Após Moisés comandar a saída do povo hebreu do Egito, Javeh ordenou a construção de um tabernáculo (e, mais tarde, um templo), onde todos pudessem adorá-lo, da maneira certa, sem caírem, no entanto, no abismo da idolatria. Ele também escolheu uma tribo cujos integrantes serviriam, doravante, como sacerdotes – os levitas (Números 3:5-7).
No Novo Testamento, lê-se a passagem bíblica em que Jesus diz: “Ide e pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15). Este versículo não é só uma frase histórica, mas constitui-se um chamado eterno àqueles vocacionados para continuarem com a nobre missão do Mestre que continua ecoando nos corações cristãos até hoje.
Ao longo dos séculos, esse mandamento tem inspirado inúmeras pessoas a compartilhar as boas-novas, levando esperança aos quatro cantos do mundo. A força dessas palavras ultrapassa barreiras culturais, linguísticas e geográficas, mostrando que a mensagem divina é universal e atemporal.
Monsenhor Inácio Nogueira Magalhães, nascido na Ibiapaba, mas que adotou, depois de pouco tempo de ser ordenado padre, Camocim como sua Terra Prometida, era um homem de bem e um dedicado servo do Altíssimo, cujo exemplo de vida espelha com grandiosidade a nobre missão de evangelizar, que escolhera seguir, trilhando com sabedoria e humildade os passos do Senhor, mostrando-nos, através de suas ações e fervor religioso, que o Rabi de Nazaré, filho amado do Paizinho do Céu, era o norte que deveríamos sempre buscar para termos alegria e paz abundantes, no coração, cientes de que os seus ensinamentos divinos eram lâmpada que iluminava os caminhos e tocava fundo a nossa alma.
Muito embora o velho pároco não tivesse o dom da oratória, ele contrabalançava este senão com suas prédicas sucintas, cheias de fé, onde enaltecia a figura de Cristo, que, para nos salvar, suportou, na sua condição humana, todas as dores, humilhações e sofrimentos, imolando-se, como Cordeiro, obediente aos desígnios do Todo Poderoso, na cruz, no Gólgota, demonstrando, assim, de forma inequívoca, com este gesto sublime de doação, o seu amor incondicional por todos nós.
Por essa época, meados do século passado, a cidade, ainda adolescente, era um encanto de poesia, de cores, de aromas, gravitava entre dois polos (Kepler que me perdoe por dizer isto): o cais e a estação ferroviária, que se revezavam em atrair multidões, todos os dias, cujo perfume das manhãs, aflorando nos jardins floridos das suas praças bem cuidadas, onde os passarinhos faziam festa, perpassava ruas e becos, entrando alegremente nos lares, enquanto a pequenina urbe litorânea sonhava docemente tornar-se uma radiosa mulher no futuro.
Neste contexto provinciano, desvendaremos o véu dos acontecimentos pretéritos que irão servir como pano de fundo dessa nossa história.
Certa feita, a diocese de Sobral, cujo Bispo emérito, D. Valfrido, ciente do trabalho incansável do pároco, que atendia, nas suas funções sacerdotais, as “desobrigas” dos lugarejos da zona rural camocinense, celebrando missas, aqui e ali, em ocasiões especiais, presenteou-lhe com um fusca novo em folha, a fim de facilitar a sua locomoção, mormente nas suas visitas clericais, porquanto, sabia-se, sendo visível por todos, o fardo dos anos já pesava bastante sobre os seus ombros, vergando-os diante de tantos compromissos que ele tinha que assumir.
E aconteceu que, radiante de contentamento por aquele presente real, com o beneplácito de alguns bons samaritanos, ele incumbiu um pedreiro de sua confiança para construir sem demora uma garagem, ao lado da casa paroquial, onde o veículo ficaria resguardado do sol, da maresia, da chuva, além de certos olhares de indivíduos mais curiosos.
Depois de algumas aulas de direção, dadas por um dileto amigo mariano, de posse dos fundamentos básicos que lhe conferiam o status de motorista, o bondosos clérigo achou que era chegada a hora de aventurar-se, sozinho, com o fusquinha, pela cidade, usufruindo da comodidade que o carro poderia lhe proporcionar num breve passeio.
Naquela manhã, após cumprimentar o sol, através das janelas abertas que respiravam o odor dos jasmins, Monsenhor Inácio Magalhães fez um rápido desjejum, sentando-se, em seguida, na sua poltrona favorita para ler o breviário, aguardando a missa dominical das nove horas, dedicada às crianças e aos jovens, que tanto ele gostava de celebrar, lembrando-se do convite para o almoço que a família Morel fizera a ele.
Terminada a celebração eucarística, demonstrando um pouco de nervosismo, algo muito comum para qualquer principiante, ele resolve tirar o fusca da garagem, e, com cuidado e atenção redobrados, dirige-se à uma residência, situada próxima do Balneário, onde, além da frugal refeição, por certo, travaria uma boa conversa com os anfitriões.
Dirigindo bem devagar, ao passar pelo mercado, no cruzamento da Senador Jaguaribe com Independência, o vigário vê, descendo calmamente a Praça do Coreto, uma simpática galinha com seus pintainhos atravessar o seu caminho, pondo-se, sem pressa, a cavucar, ali, resquícios de cereais que haviam caído de um caminhão de carga.
Para surpresa dos circunstantes, que observavam aquilo, ao invés de buzinar para espantar o galináceo, Monsenhor Inácio para o carro (por sorte não havia muito trânsito), desce, e, com paciência de Jó e voz mansa, gesticulando teatralmente, começa a enxotar a galinha, que, deveras assustada com aquele despropósito, resolve sair à francesa dali.
Apesar daquela cena fosse realmente hilária, de tanger boas gargalhadas, por respeito ao sacerdote, que era muito benquisto por todos os camocinenses, ninguém ousou se manifestar e cada um continuou a desfiar o rosário da conversa interrompido abruptamente.
Com o passar do tempo, mais tranquilo e confiante, via-se cotidianamente o pároco desfilando, pela cidade, com o seu fusquinha, ensejando a ele, certamente, momentos de contentamento de criança.
Certa feita, porém, ao retornar à noitinha de uma visita que fizera a um paroquiano, acometido de uma grave doença, que estava em estado terminal, a quem dera a extrema unção, além de palavras de conforto espiritual, o vigário, sob a fraca iluminação daquela artéria citadina, talvez cansado, não se sabe ao certo, ao tentar colocar o fusca na garagem, que deixara propositadamente aberta para facilitar a sua volta, tangencia o carro de forma equivocada, vindo a bater de leve o lado do carona numa das paredes lateral, quase sofrendo um acidente.
Após isto, talvez com receio de algo pior acontecer, o piedoso vigário resolveu que era chegada a hora de se aposentar do seu fusquinha, contratando, a partir daí, um chofer para auxiliá-lo nas suas andanças.
Camocim, cidade mulher da minha vida, bordada de prata à luz do luar, menina dos olhos meus que enche de luz minha alma vazia, quantas lembranças ressoam tão fortes, na mente, que me fazem voltar, de um salto, à mocidade fagueira, ora distante, que, ingrata, não volta jamais.
*Professor e Escritor Camocinense
