domingo, 23 de janeiro de 2022

"O CORONEL DO RIO SALGADO", POR AVELAR SANTOS

Durante quase cem anos, em Lavras da Mangabeira, ao lado da família, dono de vastas terras, e de incontáveis almas, o coronel Otaviano Paiva teve vida de rei.

Na velhice, com o falecimento da esposa, e de dois filhos, encontrava-se somente na companhia da filha caçula.

Da casa colonial, fincada num outeiro, divisava-se o Rio Salgado, lá embaixo, estancar o passo, repentinamente, ao fazer uma curva sinuosa, escorrendo, devagar, à sombra de oitizeiros, ansiando correr de novo para abraçar o Jaguaribe.

Naquela fim de tarde, espiando a roda do tempo girar, desenrolando, sem pressa, o novelo de seus pensamentos, enquanto o passaredo dizia adeus ao dia, cantando, pelos bosques, o fazendeiro, postado na ala noroeste do alpendre, observou que alguém subia o monte, a cavalo, puxando uma mula, a trote, dirigindo-se ao casario.

Quando o estranho finalmente apeou da montaria, amarrando-a, com cuidado, ao lado do animal de carga, numa cerca de pau a pique, perto do curral, o coronel, de pé, sob o facho bruxuleante da luz de um lampião, dava boas vindas ao visitante.

Nesse exato instante, um vento frio varreu a escuridão, uma chuva forte começou a cair, enquanto relâmpagos riscavam o céu - e o ribombar dos trovões era ensurdecedor.

Vestido num gibão de couro, bastante maltratado pela inclemência dos anos, com um surrado chapéu de aba larga a cobrir-lhe parte do rosto, de aparência soturna, o forasteiro, com uma voz cavernosa, agradeceu a hospitalidade, ao senhorio, rogando-lhe, com humildade, que lhe desse abrigo por aquela noite.

Desde a mocidade, o coronel Otaviano Paiva fora um homem destemido, sendo aclamado por todos, na região, por sua coragem, jamais deixando de agir, nas situações mais extremas, construindo, assim, amizades - e muros de inimizade.

Entretanto, sem saber o porquê, ele se sentia agora amedrontado diante daquele desconhecido, de roupas rotas, cheirando mal, parado à soleira da porta, silencioso, que aguardava a resposta ao seu pedido.

E o coronel ouviu a si mesmo dizer, sem muita convicção, quase que num sussurro, que o estranho podia ficar sob o seu teto, até a manhã seguinte, resguardando-se da frialdade da madrugada que seria intensa.

Depois de dizer ao homem que podia dispor de um aposento lateral, fora da residência, usado antigamente como dormitório, pelos rurícolas, e de oferecer-lhe uma refeição, que fora por ele recusada, o coronel foi deitar-se.

Mas, demorou a conciliar o sono!
E teve um pesadelo!

No sonho, ele via o forasteiro, debaixo de um temporal, munido de uma ferramenta, abrindo uma cova rasa, no caminho que dava ao Rio Salgado, perto dali, enquanto um corpo mutilado jazia sobre a relva.

Quando o coronel aproximou-se mais para ver se reconhecia o morto, deu um grito de pavor, deparando-se consigo mesmo.

Com a chuvarada cessado por completo, ao raiar da Alva do outro dia, um viandante, montado num alazão, saía tranquilamente da propriedade do coronel Otaviano Paiva, carregando uma besta, que trazia, estranhamente, no lombo, dentro de um saco, uma pá ainda suja de terra.

Avelar Santos (Professor e Escritor)