domingo, 6 de novembro de 2022

CONTO

Por 
Rosymile Andrade

O chão amarelo da poeira molhada. Cheiro de terra batida que acaba de sentir o respingar aliviado do anúncio dos cajueiros florando, quando ele decidiu fazer uma visita saudosa e triste. Lembrou de como aquela terra salobra era imensa em sua recordação. 

Toda memória de quintal tem o poder de ser maior que qualquer lugar do mundo, por imenso que esse outro seja. A memória torna tudo continental. Pegou o carro de banco zoadeiro e lataria enferrujada, foi sem dar satisfações a ninguém. 

Nem sequer se preocupou em deixar um bilhete que estaria por viajar em busca... de quê? 

De algo. Não disse nada porque, intimamente, não tinha como justificar sua ida. Não saberia dizer em palavras que queria ir sem saber porquê. Não saber falar é um jeito frio de morrer. 

Então, ele se fez gesto. Horas de viagem no sereno costumeiro e trepido. Lhe era estranho as árvores grandes, as copas cerradas da carnaubeira. Não eram dessa forma nos anos longínquos de sua memória. Não eram tão espaçadas e podadas nessa insistência de sumir. 

Os pneus não ajudavam a sair do lugar enquanto acelerava. Gostaria de chegar no intervalo de uma respiração. Voltou para seu lar, seu natural. O mar vindouro batia macio na orla numa dessas tardezinhas de passeios de gente de braços enlaçados. Foi ao mar, não entrou, não havia porque entrar em um lugar do qual não gostaria de sair. Ainda mais ele, que sempre quis entrar e sair sem temer nada e ninguém. 

Foi a uma birosca próxima, não reconheceu os funcionários, o local só mantinha o nome do patriarca que não se tinha muitas notícias. Pensou, deve estar velho e ausente como eu. Na ausência foi em busca de algo que não sabe dizer o quê. Perdeu-se de si, perdeu seu presente e se ligou a tudo que lhe acalentara, a memória trivial do passado. 

O celular já descarregado não lhe importava. Estava bêbado de realidade e cerveja barata. Cansado foi em busca de lugar pra recolher o corpo farto. No casebre de instalações úmidas pediu um quarto. Entrou, não havia malas nem pertences que levasse consigo. 

Precisava de um banho. No banho a humilhação. A água salobra riu-se dele, jorrando em seu corpo os resquícios de água salina marítima que se recusara entrar. Nu, molhado embaixo do jato morno. Lá chorou, não há nada mais triste e penoso que um velho a chorar. E misturou-se as lágrimas na água, as águas misturaram-se nele. Tudo era um. Tudo era água.