Tendo louvado humildemente ao Altíssimo pela dádiva preciosa de me conceder mais um dia de existência, dádiva bendita dos céus, eis que estou pronto para a minha caminhada matinal.
O velho fusca, amigo de todas as horas, ainda sonolento, coitadinho, vai me levar, num trote ágil e seguro, até a antiga Estação Ferroviária, onde, após lhe agradecer penhoradamente a gentileza da carona, deixo-o, embora sem necessidade alguma, todo atravancado, visando dificultar a ação de qualquer meliante desavisado que queira imbecilmente surrupiá-lo, e, incontinenti, rumo à Avenida Beira-Mar, a fim de dar início ao meu percurso cotidiano deste saudável exercício físico.
Bordejando o belo manguezal da Ilha da Testa Branca, cuja visão magnífica - e romântica - me faz sempre lembrar as aventuras extraordinárias de Robinson Crusoé, vê-se uma flotilha de velas brancas, irmanadas siamescamente umas às outras, que se dirigem, majestosas, em direção ao Pontal da Barra.
Nesse momento, cadencio um pouco mais o passo e uma paz do tamanho do Atlântico invade afoitamente o meu coração, fazendo-me renovado comigo mesmo, gritando, ao meu ouvido, com todas as suas alvas letras, que urge que eu seja uma pessoa melhor, que desenvolva persistentemente o dom do perdão, afastando definitivamente de minha alma toda mágoa, que tanto a embrutece e enclausura, pobrezinha, para que, finalmente, quem sabe, o rio caudaloso da alegria possa fluir nas ribanceiras da minha vida – e que eu possa ser verdadeiramente feliz!
Estamos em Novembro, e o vento forte, que sopra ininterruptamente, sem se cansar jamais, parece brincar com as ondas do mar, mexendo nos seus penachos, agitando-as, encapelando-as, levando, no seu vórtice, as canoas para bem longe, além da fímbria perdida do horizonte, mais rapidamente para o local da pescaria.
Próximo das Pesqueiras, na copa dos coqueirais, uma legião de educados bem-te-vis, a me ver caminhar, saúda-me com um uníssono bom dia, escandindo maravilhosamente cada sílaba solfejada, num canto pungente, único, como se tivesse sido treinada mesmo por um exímio maestro.
Apressando um pouco mais o ritmo das passadas, já deixei para trás a Praia dos Botes, com seus esplêndidos Bastardos, que lembram nostalgicamente os saveiros da Boa Terra, outrora Praia das Pedrinhas, onde, na adolescência, tanto contentamento me proporcionou, ao me deixar mergulhar, vezes sem conta, nas suas águas tranquilas, tépidas, convidativas, que faiscavam mil esmeraldas, cegando-nos momentaneamente os olhos com a iridescência do toque mágico da luz solar, que se refletia nelas por inteiro.
Ato contínuo, transpus, ileso, o umbral que separa o Boa Vista Resort Hotel da Praia das Barreiras. Ao passar pelo Mirante, observo, encantado, que Sua Majestade Imperial, o deus Aton, vestido esplendorosamente com roupas cardinalícias, solenemente vai tomando conta de tudo. A paisagem é simplesmente de tirar o fôlego!
Rejuvenescido, como se fora uma criança, aspiro o ar marinho a plenos pulmões – e sigo resoluto em frente, com a determinação insuperável de Aníbal, o grande general de Cartago, que sonhou, com destemor incomum, mas em vão, conquistar a orgulhosa Roma.
Ao chegar ao El Mirador, ao término do calçadão, faço roboticamente meia volta, sem antes, contudo, debruçar mais uma vez o meu olhar apaixonado para o mar, cuja cauda gigantesca se alonga além do horizonte infindo, que, lá embaixo, acena e grita insistentemente por mim, dizendo-me, boa criatura de Deus que o é, que absolutamente nada é impossível àquele que crê e confia no Senhor.
Sorrio intimamente com tamanha deferência do meu estimado irmão, que tanto alegra os meus dias e que me dá constantemente tão sábios conselhos, infelizmente nem sempre seguidos, e, erguendo os punhos, para ele, em silenciosa - e efusiva - saudação, continuo bonapartianamente célere a avançar.
Quietinho, quase imaculado, se não fora a ferrugem que está impiedosa e vorazmente a devorá-lo, o fusquinha me espera pacientemente.
Como de hábito, levar-me-á ao Mercado, ao Cícero (certamente não o Agostinho) para eu refazer as forças com uma boa pratada de caldo de mocotó, sem me preocupar um tantinho assim que seja com o aumento dos índices de colesterol, que devem estar absurdamente acima das nuvens, ouvindo, atentamente, dos circunstantes, as primeiras notícias da manhã, e, de quebra, deleitar-me com suas graciosas e curvilíneas atendentes, que ninguém é de ferro.
Que o Todo Poderoso, na sua infinita misericórdia, permita que, amanhã, este abençoado ritual franciscano, que tanto me apraz, tenha um novo e emocionante Capítulo!
*Professor e Escritor Camocinense