domingo, 10 de agosto de 2025

O ILUMINADO

Por Inácio Santos
(Escritor Camocinense) 

No ano de 1931, na localidade de Boqueirão (interior de Camocim), nascia o filho do sitiante e agricultor José Inácio dos Santos (Zeca) e Joana Laurindo dos Santos (Janoca), o primogênito de uma prole de 05 irmãos, recebendo por nome de batismo – Expedito Inácio dos Santos.

Homem afeito ao trabalho, de poucas posses, Zeca Inácio tirava o sustento de sua família da roça e da criação de animais: galinhas, patos, porcos, carneiros, etc. Somava-se às suas atividades o comboio. Como naquele tempo não havia condução motorizada, tudo era na tração animal. 

O comboieiro era, na verdade, um mascate, pois levava no lombo de mulas de carga, jumentos, cavalos, etc. grande quantidade de mercadorias de variedades diversas e percorria longas distâncias, vendendo nas feiras das cidades vizinhas, bem como em sítios e logradouros. A troca de produtos também era feitio do comboieiro.

O comboio do Sr. Zeca Inácio percorria a região de Camocim, Granja, até a Serra da Ibiapaba, passando por inúmeras localidades, parando aqui e ali, da saída à chegada, levava em média 15 dias, dependendo das condições de tempo e outros imprevistos no decorrer da viagem.

Logo que o filho primogênito – Expedito – completou idade suficiente para ajudar (sete anos), passou a fazer parte desses comboios, juntamente com o pai e comitiva, não obstante ajudasse também na labuta da roça, no manejo com os animais e até nas noites de pesca de carás, lambaris e curimatãs, no lago do Boqueirão, que ficava praticamente no quintal da casa. Peixe que ajudava a dieta da família.

Quando já adolescente e continuando com sua labuta e afazeres que aumentavam com a idade, chegou por aquelas bandas, vindo do sul, um tal mestre Rodrigues (professor) que resolveu montar uma escolinha para alfabetizar os jovens daquela região. O então mancebo Expedito conseguiu uma vaga na referida escola, com um tremendo esforço, pois tinha que contrabalançar seus afazeres com os estudos, chegando a fazer até a 5ª série, o que muito o ajudaria durante a vida.

Certo é que o rapaz ao completar dezoito anos, livre do jugo dos pais, pela maior idade, decidiu não continuar na roça, como era de se esperar, pois não tinha vocação para tal atividade. Já possuidor de algumas criações e alguns cobres (parcas economias que de há muito vinha fazendo), uma pequena ajuda dos pais e sua bênção, veio então, para a cidade (Camocim), tentar o comércio. Militou no ramo, sozinho por algum tempo para conseguir experiência, depois se tornou sócio de um abastado e experiente comerciante. Somente após alguns anos desfez a dita sociedade e estabeleceu-se por conta própria no mercado público de Camocim.

Saltemos adiante no tempo para já encontrarmos o Sr. Expedito Inácio então casado com a jovem Maria Adelaide dos Santos, esposa fiel e dedicada, natural desta cidade, com uma prole de quatro filhos, dos quais esse cronista é o primogênito.

Corria o ano de 1968 (tinha eu sete anos); lembro-me perfeitamente do meu pai saindo todo dia de casa, às cinco horas da manhã, para a bodega no mercado público, voltando ao meio dia para o almoço, saindo logo em seguida, só então retornando às dezoito horas quando o mercado fechava as portas. Por ser o mais velho, levava-me com ele para que fosse aprendendo e o ajudasse, perguntando preços nos armazéns, levando recados e trazendo para casa o que precisasse. Isso me foi de muita valia.

Foi por esse tempo que meu pai resolveu construir a tão sonhada casa própria, até então morávamos de aluguel. Para isso, comprou um lote de terra na Rua Independência (endereço atual), iniciando a construção.

Foram longos meses de trabalho e privações, visto que os recursos eram poucos. Até que enfim chegou o tão esperado dia. A mudança foi feita no velho caminhão FORD – 1965, (olho de sapo) do Sr. Izaías, figura típica, pois por mais urgente que fosse o frete, nunca ultrapassava 30 km/h. Chegamos à tardinha; naquela época, a rua não era pavimentada e a energia vinha da velha usina (a motor). Rara era a residência que havia luz elétrica; a grande maioria era mesmo a base de lamparina a querosene ou petromax (espécie de farol com manga de vidro e camisa incandescente). Feita a mudança, às pressas, pois logo escureceu, nos acomodamos para passar a noite.

Ao amanhecer, despertei extasiado para o primeiro dia real em nossa nova e tão sonhada casa. A casa era composta por uma sala (adaptada para ponto comercial) logo após o quarto, sala de visitas, sala de jantar, cozinha, banheiro e quintal; estava apenas levantada, sem reboco, piso morto (no tijolo), semi-acabada. Mas estava coberta (teto) e tinha portas (as da frente e parte de trás), isso era o suficiente, pois urgia sair do aluguel, já que a renda familiar estava defasadíssima. Quanto ao acabamento seria feito com “a gente” morando na casa e com calma, de acordo com as posses.

Mal o dia começou e lá estávamos todos nós, meus pais e o resto da família (principalmente eu por ser o mais velho), cada um ajudando, à sua maneira, para arrumar os poucos móveis e demais trastes que toda família por mais pobre que seja possui. O Sr. Expedito cuidava de arrumar a bodega (sala) com o pouquíssimo estoque que sobrou da outra do mercado, pois tudo investira na realização de seu sonho, um novo lar. Enquanto isso minha mãe, entre gritos e ordens, comandava a arrumação, ao mesmo tempo preparava o nosso primeiro almoço.

As horas passaram neste feliz dia; chegara o momento da nossa primeira refeição juntos, pois o café da manhã, em se tratando de crianças, é desencontrado, ainda mais na ocasião. Era, pois, o primeiro almoço em que todos estavam reunidos à mesa.

Sentamo-nos em nossos lugares, meu pai ocupando a cabeceira (sala de janta). Posta a mesa, seu Expedito pediu que nossa mãe tomasse seu lugar, olhou no relógio (era meio-dia e dez minutos), antes de iniciarmos a refeição, levantou-se e fez uma prece de louvor e agradecimento a Deus, pedindo graças para nosso novo lar e agradecendo nosso primeiro almoço. Todos nós estávamos em profundo silêncio. Ao terminar a oração, ele olhou para nós, deu-nos sua bênção e ordenou que começássemos a comer. Assim que se sentou novamente e íamos realmente iniciar o almoço, a sala foi inundada por uma luz brilhante que surgiu do nada e nos cegou instantaneamente, ofuscando com imenso brilho todos ali presentes.

É quase indescritível o que ali aconteceu, levando-se em conta a rapidez, pois não passou de alguns segundos. Foi como se vários espelhos refletissem a luz do sol, ou como milhares de flashes fotográficos explodissem de uma só vez. Ficamos estupefatos, atônitos mediante tal fenômeno.

Éramos crianças! Passado, pois, o primeiro impacto, perguntamos ao nosso pai – Que houve? – Que aconteceu? Nossa mãe acompanhou nosso coro, indagando: - O que foi isto?

Ele (meu pai) simplesmente parecendo haver compreendido ser resposta divina (com certeza era), disse-nos apenas: Não se preocupem, vamos comer.

A vida continuou; a mercearia (bodega) prosperou. Ficamos tomando conta. Meu pai reabriu outra no mercado público, ampliou a casa, criou toda a família. Hoje, aos 68 anos, já aposentado, Sr. Expedito ainda mantém (mais por hobby) sua bodega no mesmo local e continua morando na mesma casa.

Seu Expedito, meu pai, “O Iluminado”.

Inácio Santos

In literário – Outubro 1999.