domingo, 12 de outubro de 2025

MARIA DA PRETA

Por José Maria Trévia 
(Escritor Camocinense)

Sempre muita séria e recatada, Maria da Preta fez parte de minha vida, logo nos meus primeiros anos, quando morou em nossa casa na Rua do Egito. Não era muita afeita a aceitar nossas travessuras de criança. 

Sempre muito disposta, para os mais diversos serviços, concentrava-se no seu trabalho e não nos dava margem para pilhérias ou “adiantamentos”, como ela mesma costumava dizer quando se referia às brincadeiras, para as quais não havia dado liberdade. 

Entretanto, jamais nos magoava e, assim, ia-nos mantendo a distância, como forma prudente de evitar os atritos e livrar-se dos possíveis deboches, que adviriam de um envolvimento mais informal com aqueles pedaços de gente.

Maria da Preta...! Recordo, com muita clareza, o seu porte, seus braços fortes, seus brincos pendentes e baratos, seu cabelo preto e diferente... E lembro-me, também, dos seios fartos e mal contidos no decote, quando ela se inclinava para apanhar algo durante os afazeres.

Mas, há uma explicação para o fato de que aquelas mamas morenas me tenham ficado na memória, até porque foi também por esse episódio, que me motivei a colocar no papel todas essas lembranças de Maria de Preta.

Durante minha infância, não existiam, nas cidades interioranas, as torrefações industriais, que torram e moem o café, cujos pacotes são, hoje, fácil e comodamente adquiridos nos mais diversos locais de comércio. 

Naqueles idos, tínhamos em casa o pequeno moinho doméstico, para moer os grãos de café, geralmente torrados em panela de ferro. Minha mãe gostava de realizar a torrefação, contudo a tarefa da moagem cabia à Maria da Preta. 

Em um tamborete, através do parafuso-borboleta, ela fixava o moinho, alimentava o depósito, em forma de um sino de boca para cima, e passava a girar a manivela. As duas engrenagens, que se acoplavam em seus 45 graus e se tocavam invertidas, giravam o fuso que esmagava os grãos, espalhando pela casa inteira o cheiro gostoso do café torrado.

Numa tarde, enquanto Maria da Preta girava a manivela, seu corpo inclinado para frente oferecia a visão de dois seios morenos e suados, que trepidavam, devido aos esforços pelo trabalho na moenda. 

Parei diante dela e, sem que ela percebesse, fiquei a admirar aquela cena, no qual, sem nenhuma maldade ou explicação, eu havia encontrado algo admirável. 

E, assim, permaneci por alguns instantes, quando, então, resolvi partilhar, com meus dois irmãos mais velhos, aquela sensação diferente ou novidade interessante. Busquei pela casa, rapidamente, os dois parceiros que eu tinha em mente e um breve cochicho, ao pé do ouvido, foi suficiente para despertar a curiosidade deles.

De repente, estávamos, os três, diante da Maria da Preta, a observar seus movimentos, despreocupados e cadenciados, que enchiam os nossos olhos. Mas, a indiscrição foi tamanha que logo nossas “más intenções” foram descobertas. 

Maria não era tola. Parou o trabalho e cobriu-nos com um olhar abrangente e acusador, ao mesmo tempo em que levava a mão esquerda ao decote e se afastava do moinho. Deu as costas e procurou minha mãe para denunciar a afronta.

O grupo já se havia dispersado, todavia, minha mãe buscava pela casa os pequenos malfeitores, ao mesmo tempo em que esbravejava ameaças de castigos pelo comportamento inadmissível. Fui traído, mas não sei qual dos dois me delatou. 

Vi-me acossado, recostado à parede, mãos para trás, ouvindo de minha mãe, com o dedo em riste, críticas severas e o título pejorativo de “muito saliente”.

- Você está ouvindo, “seu” cabrito?

Assenti com um leve movimento da cabeça, que continuava abaixada, olhando para o chão e me permitindo apenas rápidas e discretas fugas de soslaio.

Os comparsas e prováveis delatores observavam, de longe, e riam de quem estava “pagando o pato”, por ter sido o mentor da traquinagem.

Maria voltara ao trabalho, o cheiro do café parecia povoar o mundo inteiro, enquanto eu passava pela cozinha, desconfiado, resmungando.

- Saliente... Muito saliente... Só eu...! E os meninos ? Eles também foram olhar a Maria da Preta !

Os grãos de café, torrados, estalavam dentro dos sulcos da rosca-sem-fim. O moinho, agora, mais parecia uma ampulheta, deixando escapar, do ventre, o pó que se acumulava, formando uma pirâmide, como se estivesse aferindo o tempo de moagem. 

Os seios morenos da Maria da Preta, para os quais não mais ousava olhar, provavelmente estavam menos à mostra, mas, certamente, continuavam suando, trepidantes ante os esforços repetidos e cheirando a café torrado em casa.

Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado", de José Maria Trévia.